Se na Antiguidade se dava mais importância às próprias coisas, à realidade externa, com a confiança de que o conhecimento nada mais fazia do que refletir como um espelho, 'tal como é' o que realmente existia, a Modernidade caracteriza-se por uma guinada na abordagem e uma consciência dos problemas colocados pelo fato de conhecer. Diante do realismo mais ou menos ingênuo da antiguidade, surgiu o idealismo mais ou menos transcendental da modernidade (de Descartes a Husserl passando por Kant).
Aqui vamos nos concentrar na "dimensão esotérica da realidade", mas como saber e ser, conhecimento e realidade estão intimamente ligados, é necessário considerar os problemas epistemológicos inerentes a qualquer concepção esotérica da realidade.
Poderíamos começar lembrando que talvez possamos falar de duas grandes concepções da realidade, dois grandes paradigmas ou modelos metafísicos: a concepção naturalista (ou materialista) e a concepção espiritualista (ou idealista). Segundo a primeira, a origem e fundamento do que existe é da ordem do material, de uma Energia sem consciência nem inteligência, algo que só apareceria muito mais tarde na Evolução.
Ao contrário, para a concepção espiritualista, a origem e fundamento do que existe é melhor captado como sendo da ordem da Inteligência, do Amor, do Espírito. Poderíamos dizer que as diferentes religiões históricas tendem a ser variações particulares do modelo espiritualista, enquanto o cientificismo vigente hoje tende a ser uma modalidade do paradigma naturalista, reduzindo o conhecimento válido ao conhecimento científico e a noção de realidade ao que pode ser vivenciado cientificamente.
Pois bem, as visões esotéricas podem ser entendidas como modalidades da concepção espiritualista da realidade. Embora, historicamente tenha sido comum que os diferentes esoterismos fossem associados a uma ou outra das grandes tradições religiosas (a Cabala com o judaísmo, a teosofia clássica e o rosacrucianismo com o cristianismo, o sufismo e o xiismo duodecimano com o islamismo, o tantra ao hinduísmo e ao budismo etc.) e desde meados do século XIX surgiu um "esoterismo secularizado".
Embora seja verdade que uma filosofia esotérica possa ser elaborada, interessa-nos salientar que existem métodos de conhecimento especificamente esotéricos, claramente diferenciados dos métodos das ciências e filosofias que, por isso, podemos chamar de "exotéricos".
Tais métodos fazem uso de certas "faculdades, capacidades, poderes ou modos esotéricos de conhecimento", que recebem diferentes nomes segundo os autores, mas alguns deles se destacam de maneira especial. Assim como na epistemologia exotérica se pode distinguir entre percepção, memória, imaginação, razão e intelecto, na epistemologia esotérica se encontram faculdades semelhantes, mas em uma oitava superior, poderíamos dizer.
Assim, é possível falar de clarividência e clariaudiência como percepções sutis que percebem dimensões da realidade mais sutis do que a dimensão físico-densa à qual a ciência e a filosofia costumam se limitar. Isso nos leva à cosmologia multidimensional (talvez setenária, como em muitas tradições religiosas e esotéricas), segundo a qual a realidade físico-material é apenas um dos vários níveis ontológicos existentes.
Ao analisarmos a antropologia esotérica veremos que o clarividente pode "ver" o campo áurico das pessoas, bem como os planos ônticos correspondentes, entre os quais poderíamos falar, simplificando, do plano etérico-vital, do plano emocional, do plano mental e o plano alma-espiritual. Da mesma forma que em nosso corpo físico temos os cinco sentidos físicos e seus órgãos correspondentes, como seres multidimensionais teríamos - ao menos potencialmente - sentidos semelhantes em cada um dos níveis de realidade, para que a clarividência e a clariaudiência possam ocorrer em cada um desses níveis (e em outros talvez existentes).
Quando se trata de memória, é preciso falar de outros níveis de memória. Poderia ser feita uma distinção entre uma "memória psíquica" que preserva memórias de vidas anteriores e eventos de vidas anteriores (a ideia de vidas anteriores é uma constante no esoterismo contemporâneo, e teremos que retornar à tese reencarnacionista), uma "memória do planeta" e mesmo do sistema solar ou do cosmos como um todo, o que está relacionado aos chamados "registros ou anais akáshicos" que poderiam ser "lidos" ou de alguma forma percebidos pelo Iniciado ou pelo esoterista, oferecendo assim materiais para uma reconstrução da história em seus vários níveis.
Grande parte da literatura esotérica contemporânea refere-se a tais leituras dos anais akáshicos. Edgar Cayce, Vicente Beltrán, Anne e Daniel Meurois-Givaudan e muitos outros nos deram abundantes detalhes do passado baseados neste método.
Quanto à imaginação, vale falar do poder da "imaginação criativa", da "visualização criativa", bem como do "mundus imaginalis" tematizado por Henry Corbin, especialmente em referência ao esoterismo islâmico, à teosofia de autores como Ibn Arabi ou Sohravardi. O budismo vajrayana ou tibetano-tântrico também atribui especial importância, em suas meditações, às visualizações-invocações (embora acabem se dissolvendo no Vazio luminoso).
A ideia que nos interessa destacar é a de uma epistemologia construtivista, segundo a qual a imaginação goza de um poder criativo, de modo que não se limita a ser uma faculdade intrapsíquica, mas um poder capaz de construir a realidade nos planos sutis, nas dimensões mental e emocional.
Isso poderia estar relacionado a uma "ciência oculta" tão importante quanto a "mágica", em seu sentido mais profundo, pois o mago estaria operando com energias sutis, geridas pela imaginação. E, além disso, em relação com outro tipo de entidade de importância central em boa parte do esoterismo, ou seja, os "anjos" (ou "devas" na terminologia mais orientalizante), pois seriam os aliados essenciais do "Feiticeiro".
Sem anjos não há magia, como é bem conhecido no hermetismo renascentista... e em toda magia genuína, deveríamos dizer. Os anjos são mostrados aqui como um tipo importante de "mediadores" entre o mundo material e os mundos sutis. Há nisso todo um campo de investigação no qual não podemos nos deter agora. É bem conhecida a importância que a "angelologia" teve em todas as tradições religiosas, não só no seu aspecto esotérico, mas mesmo na sua face exotérico-popular, que poderíamos considerar, por vezes, como uma divulgação e por vezes vulgarização daquela.
Quanto à razão, seria o terreno comum, essencial em todos os campos: científico, filosófico e esotérico, mas a razão entendida em sentido amplo, não como razão científica ou como razão filosófica, mas como um quadro geral de coerência, não contradição, bom senso, capacidade de ordenar e articular os dados oferecidos por outras faculdades.
Entretanto, é necessário caracterizar a "razão esotérica" como capaz de tomar dados da percepção, memória e intuição intelectual (no sentido que analisaremos a seguir como um lampejo de conhecimento por identidade), dados esses aos quais nem a razão científica nem a razão filosófica exotérica teriam acesso.
O que chamamos de "intelecto" como faculdade e seu ato de "intuição intelectual", entendido como um lampejo particular de "conhecimento por identidade" tem uma ancestralidade tão antiga quanto a platônica (em sua distinção entre diánoia - razão discursiva - e nóesis - intuição intelectual).
No século XX, Guénon fez de fato o fio condutor da verdadeira metafísica (esotérica), que junto com as autênticas revelações religiosas constituiriam as duas fontes da ortodoxia de acordo com a Tradição Primordial e as tradições religiosas e metafísicas derivadas.
É importante referir a intuição intelectual ao conhecimento por identidade (algo já delineado em Aristóteles quando disse que conhecer "a alma é, de alguma forma, conhecer todas as coisas"), pois assume todo o seu significado. Como já diziam os Upanishads, "aquele que conhece Brahman torna-se Brahman", por meio desse tipo de conhecimento segundo o qual o saber e o ser se identificam, pois é um conhecimento direto, imediato, que não depende de uma faculdade mediadora, mas é um conhecimento através do Atman, para dizer isso de acordo com a tradição hindu.
Aliás, nessa tradição, no século XX, destaca-se a figura de Sri Aurobindo, que tematizou o conhecimento por identidade ao falar de conhecimento supramental, que seria, justamente, um conhecimento desse tipo.
Nesse sentido, vale mostrar a clareza com que Guénon tematizou a ideia de intuição intelectual como essência do conhecimento metafísico, bem como a noção central de “realização metafísica” como objetivo último da busca humana.
De acordo com outra terminologia, pode ser identificado com a "realização espiritual" que em Sri Aurobindo -o mais esotérico dos mestres espirituais da Índia do século XX - supõe não apenas a identificação com Brahman, mas também a participação consciente no Plano divino de supramentalização e transformação abrangente.
Uma última modalidade de conhecimento esotérico a que já nos referimos é a "canalização", fenômeno em ascensão nas últimas décadas, embora, em uma de suas interpretações, possa ser considerada como chave hermenêutica das diferentes "revelações religiosas", das mais variadas "inspirações sagradas" que se apresentaram ao longo da história, desde as instituições dos oráculos na antiguidade, ou dos profetas judeus às obras de Blavatsky ou Bailey, passando pela escrita do Alcorão, ditada pelo arcanjo Gabriel, não mencionar as mencionadas canalizações (Seth, Ramtha, Kryon, Shuchman, Bazán, etc.) que são apresentadas com tal nome.
Estamos agora interessados em apenas alguns aspectos desse fenômeno interessante que é a canalização. Por um lado, já dissemos que pode ser definida como a transmissão (de informação, em primeiro lugar, mas também de energia, de símbolos de geometria sagrada, de mantras sagrados, etc.) através de um "canal humano" vindo de uma “fonte sobre-humana”.
Este último a diferenciaria do que conhecemos como "espiritualismo", caso em que a informação costuma ser atribuída a "espíritos desencarnados", geralmente pessoas que morreram mais ou menos recentemente e que costumam se comunicar com seus parentes ou entes queridos por meio de um "médium", ou pessoa psíquica capaz de estabelecer comunicação com os planos sutis.
Dada a impressionante chuva de mensagens canalizadas, presumivelmente provenientes das mais diversas fontes (anjos, arcanjos, mestres ascensionados, Guias e Mestres de todos os tipos, seres de outras partes do cosmos - Pleiadianos, Sirianos, Arcturianos, etc.) gosto de refletir sobre a possibilidade de que as fontes sejam realmente muito diversas, mas não apenas no sentido horizontal, mas também no sentido vertical. Isso quer dizer que a altura espiritual e a qualidade do que é canalizado dependem da altura, qualidade e pureza da fonte e correlativamente do canal.
Seguindo a tematização realizada recentemente por R. Bazán, poderíamos dizer que há oito níveis de iluminação e que pode ser canalizada a partir de cada um desses níveis, questão que depende do nível de iluminação em que se encontra o canalizador. Se recolhermos brevemente a classificação proposta por ele, podemos lembrar os oito níveis de iluminação, que são os seguintes: 1. Iniciação alquímica. 2. Domínio alquímico. 3. Alquimia sagrada ou iniciática. 4. Intelecto ou Sagrado Coração. 5. Metafísica. 6. Magia. 7. Alta Magia. 8. Magia sagrada ou Avatárica.
Interessa-nos destacar, nesse sentido, que além das canalizações mais frequentes em que se transmitem informações preciosas por meio de palavras (se o destinatário é uma pessoa, para esclarecer seu processo cármico; um grupo ou a humanidade como um todo - talvez especialmente em cada caso aqueles que estão em um nível de iluminação próximo ao nível de iluminação a partir do qual a informação é transmitida), a partir do sexto nível, o nível da magia, o canalizador poderia canalizar símbolos de alto potencial energético de transmutação, pois a partir do sétimo nível, o nível da alta magia (no qual muito poucas pessoas seriam encontradas neste momento evolutivo), mantras sagrados podem ser canalizados, com um poder de transmutação energética igualmente alto.
Pois bem, queremos insinuar que o trabalho com símbolos (sempre dentro da ciência da geometria sagrada) e com mantras canalizados daqueles altos níveis constitui um dos aspectos mais genuinamente esotéricos, não apenas das canalizações recentes a que nos referimos, mas também dos diferentes ensinamentos esotéricos de todos os tempos.
Não seria, então, por meio de palavras que o significado e ensinamentos mais profundos podem ser transmitidos, nem como um trabalho profundo de transformação interior poderia ser realizado – o que, como veremos, é parte indispensável de qualquer concepção esotérica que busque a transmutação alquímica, espiritualização, santificação, supramentalização, ressurreição, ascensão ou mesmo deificação -, mas muito especialmente através da contemplação e integração de símbolos sagrados e da pronúncia, entre oração e canto, de certos mantras, sons de poder, de alto potencial de transformação, capaz de alterar e transformar, iluminar, a frequência vibratória de quem com eles trabalha e é por eles trabalhado.
Escusado será dizer que estas duas ferramentas de conhecimento e transformação têm sido conhecidas e utilizadas nas mais variadas tradições, desde o japa hindu (repetição de mantras) ou a oração do coração ou oração de Jesus no hesicasmo cristão, às ladainhas e Rosários católicos, através de mantras e mandalas budistas ou das fórmulas repetitivas do Islã. Talvez se possa dizer que o mantra e o símbolo são duas das ferramentas mais fundamentais das iniciações esotéricas.
E com isso entramos em outro dos campos destacados do esoterismo, como a Iniciação (nos Mistérios da Vida e da Morte). Em toda iniciação espiritual esotérica há um candidato à iniciação (um iniciado) e um hierofante (um iniciador). Este último transmite não só ou fundamentalmente um ensinamento, uma doutrina, uma informação, mas também e mais importante, uma energia espiritual capaz de ativar alguns dos "chakras" ou centros sutis do iniciado.
Com seu cetro de poder espiritual, o iniciador "desperta", "ativa", "liga", "estimula" alguns desses centros e as faculdades correspondentes, talvez transmitindo também algum mantra pessoal, que o acompanhará por um tempo, talvez colocando com delicadeza angélica algum símbolo na aura do iniciado, selando uma certa relação entre o ser humano e o anjo ou anjos que desde então - se não antes - o acompanharão de maneira especial, para compor a polaridade humano-angelical necessária à verdadeira magia sagrada, transformando-se e o mundo, a alma, o corpo e a matéria circundante.
Talvez tal "abertura" espiritual permita, por sua vez, ao iniciado penetrar de uma nova maneira no significado dos símbolos, aprender a ler os símbolos, a contemplar os símbolos, abrindo sua porta para poder compreender tudo o que eles representam, tudo o que eles simbolizam, pois o símbolo não só traz à consciência o que é simbolizado, mas também leva a consciência para símbolo, servindo como um “suporte para a contemplação” e um trampolim que permite a ascensão ao nível ao qual o símbolo pertence.
É que os símbolos sagrados são, muitas vezes, a expressão de certos campos de consciência-energia de alta voltagem, de alta iluminação, quase a encarnação de altas consciências, de certos Mestres luminosos, com os quais é possível entrar em contato, e até mesmo integrar-se a si mesmo, precisamente por meio de uma autêntica “contemplação” por meio da qual aquele que contempla e o contemplado se tornam um, como os símbolos e mantras de origem advaita, não-dual, permitem de maneira especial.
Em suma, o conhecimento esotérico é fruto de uma série de faculdades "paranormais" que a parapsicologia científica analisa intensamente há mais de meio século: telepatia, clarividência, clariaudiência, precognição, psicometria, projeção fora do corpo (ou viagem astral ), são habilidades que muitas vezes foram despertadas no esoterista, no iniciado, e que estiveram presentes nas diferentes tradições religiosas, entre os santos e sábios de todas as culturas, entre os místicos de todos os tempos.
No hinduísmo, o Yoga-sutra de Patanjali, no terceiro capítulo, Vibhuti-pada, estes e muitos outros "poderes psíquicos" são expostos diante dos quais o buscador é posto em guarda, pois sua posse e seu uso, se a aspiração a realização final não é muito firme, pode se tornar um obstáculo no caminho, pela facilidade com que se apega a eles e se identifica com o personagem capaz de exibir tais poderes.
Nas tradições tântricas, tanto hindus quanto budistas, tais poderes são igualmente conhecidos e usados. No Budismo Vajrayana, o ideal do sábio não é mais o ahrat do Hinayana, ou mesmo o Bodhisattva do Mahayana, mas sim o Siddha, aquele que, além das conquistas dos anteriores, se caracteriza por ter dominado tais "poderes" e poder usá-los quando for conveniente.
Entre os místicos e santos cristãos, esses "poderes milagrosos" são igualmente conhecidos. O próprio Jesus, o Cristo, mostrou-lhes, se acreditarmos nos Evangelhos. Mas isso já nos levou muito longe.
Meditação mística e meditação esotérica: o caminho e o objetivo
Não gostaria de terminar sem deixar espaço para a importância da meditação como método de conhecimento, tanto da dimensão esotérica da realidade (objetiva), quanto dos objetos (de sua estrutura sutil, interna; em algumas interpretações até mesmo de sua “essência” ) como a dimensão mais interna e oculta dessa realidade que nos interessa de maneira especial, a realidade subjetiva, pois, como veremos, talvez o mais relevante da meditação seja o que ela pode nos mostrar (não demonstrar, mas apenas para mostrar) do Sujeito transempírico, o que podemos chamar com Assagioli o Eu transpessoal, ou simplesmente "a alma", ou com a tradição hindu o Atman, ou com a tradição budista o dharmakaya, a realidade última, da qual é possível dizer que ela é tanto transobjetiva (além de qualquer objeto, tanto físico quanto sutil) e transsubjetiva (se pensarmos na subjetividade empírico-psicológica).
Agora, a primeira coisa a ter em mente é que na tradição filosófica ocidental, “meditação” tem sido geralmente associada à “meditação reflexiva, conceitual, discursiva”. As "Meditações metafísicas" de Descartes e as "Meditações cartesianas" de Husserl são dois excelentes exemplos disso. No entanto, não é a essa "meditação filosófica" que queremos nos referir, mas a esses outros dois tipos de meditação que podemos chamar provisoriamente de "meditação mística" e "meditação esotérica ou oculta" (se esses termos não soarem tão mal para a maioria dos nossos ouvidos).
Embora não pretenda defender que haja uma distinção nítida entre estes dois últimos tipos, parece-me oportuno distinguir alguns traços característicos de cada um deles. Assim, por "meditação mística" entendo o processo de transcender a reflexão discursiva, abrindo-se a campos de consciência-energia que geralmente desconhecemos. É, portanto, uma "expansão da consciência", uma expansão e intensificação dela. Talvez a tradição hindu e a tradição budista sejam as que mais sistematicamente praticaram e tematizaram esse tipo de meditação.
Basta lembrar a famosa definição oferecida por Patañjali nos Yoga-sutras, especificamente no segundo aforismo de sua obra. Ele diz, precisamente, "yoga é a quietude dos movimentos psíquicos" (citta vritti nirodha: a parada, a cessação das modulações da substância mental, da psique). E quando isso acontece, longe de cair em um estado de sonolência ou inconsciência (como o bom Hegel acreditava acontecer, como expresso em seus comentários sobre o Bhagavad Gîtâ), a descoberta do purusha (equivalente em yoga à noção vedântica do atman), da alma individual no yoga, do eu, do sujeito transempírico. Purusha que pode ser entendido, precisamente, como “pura consciência”, ou se preferir “pura autoconsciência”.
É o estado de nirbija samadhi, de êxtase, "énstasis" ou pura contemplação. Nesse momento, o sujeito (transempírico, espiritual) se sabe transcendente (estar além de toda realidade empírica), estando além até mesmo da série de suas encarnações e do conjunto de seus corpos sutis. Tudo isso pertence ao mundo da prakriti, a Natureza, os campos de energia em suas diferentes formações.
O purusha agora é conhecido além de todos os mundos, além de toda realidade cosmológica. No vedanta advaita (não-dualista), samadhi é a revelação da realidade última (Atman=Brahman), além não apenas de todo o cosmos multidimensional, mas de toda suposta individualidade (tanto empírica quanto transempírica). Tudo isso não passa de uma espécie de ilusão, uma miragem, que constitui o jogo da manifestação.
No budismo, se tomarmos o budismo tibetano, o Vajrayana, como exemplo, podemos apontar três momentos principais: samata, serenidade ou quietude da mente; vipassana, a discriminação intuitiva, da mente serena, da verdadeira natureza da realidade, descobrindo a insubstancialidade de todos os seres, de todas as coisas, tanto objetos quanto sujeitos, que se mostram agora, por trás da desconstrução lúcida deles, como carentes de qualquer entidade próprias, constituídas por uma complexa inter-relação ou interdependência, não encontrando nem essência substancial nem qualquer sujeito substancial, pois todas elas se mostram “vazias” de sua própria substancialidade, originando-se de maneira dependente, contingente.
Especialmente, a fase vipassana tende a mostrar altruísmo (nem empírico nem transempírico), confirmando assim a doutrina do altruísmo (anatmavada) que em alguns textos do cânone Pali parece ser afirmada. Num terceiro momento, o mais característico de algumas das linhagens vajrayana, o dzgochén, pode ser entendido como a abertura radical à nossa natureza búdica, a instalação no Dharmakaya, a realidade última, paradoxalmente entendida como Vazio luminoso.
Isso vale como uma aproximação ao que chamamos de "meditação mística", da qual nos interessou destacar aquela transcendência da mente discursiva (até descobrir a "mente de Buda" ou a "não-mente"), da razão conceitual (até desvendar o atman, a consciência pura), diferenciando-se nela, claramente, do que chamamos de "meditação filosófica" (racional, conceitual, discursiva).
Na minha opinião, essa "dimensão mística" da meditação, que nos revela a "dimensão mística da realidade", a realidade mística, é inalienável para qualquer compreensão esotérica da realidade. Gostaríamos de dizer que ela constitui antes o horizonte de sentido da "meditação esotérica" que gostaríamos de caracterizar a seguir.
Precisamente, se a meditação mística nos revela a dimensão última da realidade através da contemplação, união ou identidade suprema com Ela, a meditação esotérica, que assume a importância das “mediações” e dos “mediadores” tem algo a “ver” e algo a “fazer” (não apenas algo para “ser”) com esses planos sutis, com essas energias sutis, com essas realidades sutis, que estão entre o plano físico e a Realidade última.
A meditação esotérica pode ser vista como um trabalho de alquimia (para retornar à linguagem e significado desta ciência oculta tradicional). Nesta concepção, a realidade é um conjunto de campos de energia-consciência nos quais se pode intervir através do poder da vontade e do poder do pensamento.
A imaginação criadora e o poder do mantra sagrado são ferramentas fundamentais nessa concepção da meditação como processo de transformação, de transmutação pela aceleração da frequência vibratória das energias que compõem esses campos de energia-consciência.
A meditação esotérica como alquimia supõe, portanto, a possibilidade de uma "espiritualização da matéria", e isso afeta tanto o mundo externo quanto o mundo interno, o cosmos e a psique. Com efeito, nesta visão da alquimia espiritual, o corpo, as emoções, a mente e até a própria alma estariam sujeitos a um processo evolutivo cujo significado seria a espiritualização ou iluminação progressiva. Como se a frequência vibratória de cada um desses fatores do ser humano pudesse ser transformada e “elevada”.
Nesta ocasião, os meios para isso seriam os símbolos da geometria sagrada e os mantras como sons luminosos. São dois campos imensos nos quais não podemos nos aprofundar agora, apenas indicam que se abre um horizonte dessa forma em que conhecimento, transformação e realização andam de mãos dadas.
A título de insinuação, queríamos sugerir também a repercussão nos "planos objetivos", no triplo mundo da manifestação - como diziam os Vedas - deste tipo de meditação esotérica: o mundo físico e os mundos sutis, o "mundus imaginalis" tematizado por Corbin, a que já nos referimos, ou na terminologia teosófica, o mundo astral ou emocional e o mundo mental.
Embora isso possa parecer estranho para alguns, não está muito longe da velha ideia de que "o sacrifício védico é o que mantém a ordem do mundo", ou que "os sábios e santos que rezam são os que conseguem produzir um equilíbrio sociedade".
De fato, uma interpretação esotérica da oração pode ser feita e a oração pode ser vista como um procedimento alquímico, mágico (no melhor sentido dessas palavras), uma comunicação com consciências supra-humanas, ou simplesmente não humanas, como as consciências angélicas, que como já dissemos, constituem uma contrapartida indispensável em todo trabalho mágico.
Mais uma vez, os anjos como intermediários essenciais, neste caso na meditação esotérica, alquímica, transfiguradora, comprometidos não só com a transformação pessoal, mas também com a transformação coletiva, pois, em última análise, o esoterista sabe que é uma célula do grande corpo planetário, holograma consciente do Grande Holograma Cósmico e sabe que "como em cima é embaixo e como abaixo é acima", ao qual poderíamos acrescentar: "como dentro, fora; como fora, dentro".
A meditação mística e a meditação esotérica seriam, portanto, dois aspectos desse caminho de transfiguração, da psique e do cosmos, desse caminho de realização integral que não deixa nenhum dos aspectos da realidade fora de seu campo de interesse: nem o material nem o espiritual, nem o social nem o cultural.
(Vicente Merlo)
FONTE: Excertos do artigo "LA DIMENSIÓN ESOTÉRICA DE LA REALIDAD" (vicentemerlo.wordpress.com)
Nota: Vicente Merlo Lillo é doutor em filosofia, escritor e professor, especializado em yoga, budismo e hinduísmo, viveu vários anos na Índia. Professor do Mestrado em História das Religiões na Universidade de Barcelona e na Universidade Autônoma de Barcelona. É autor de vários livros, sendo que o último - Iniciação à Psicologia Transpessoal - foi publicado simultaneamente em três idiomas: espanhol, português e inglês. Traduzido para o português, também temos outro excelente livro de Merlo: "Os Ensinamentos de Sri Aurobindo - O Yoga Integral e o Caminho da Vida", publicado no Brasil pela Editora Pensamento, em 2010.
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