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Além da Crença Cristã - Parte II: Jesus gnóstico, o Aeon da salvação

Por L.C. Dias

"A cosmovisão gnóstica sempre foi oportuna, pois sempre expressou o ‘conhecimento do coração’ que é a Gnose verdadeira. Para os que anseiam por esse conhecimento, o gnosticismo continua sendo uma tradição viva, e não meramente um movimento histórico." 
Stephan A. Hoeller 


“Qual é o propósito destas ideias gnósticas para nós, no presente? Respondemos que, como entre os melhores desses gnósticos se encontravam as mentes mais filosóficas e mais bem treinadas do mundo cristão inicial, é válido ouvir o que eles têm a dizer sobre o Cristo." 
***
"A ideia do Cristo vivo oferece o incentivo mais poderoso ao esforço vigoroso na vida da cristandade." 
***

“Gnosis não é conhecimento sobre alguma coisa, mas comunhão, conhecimento de Deus“.
G.R.S. Mead

“Jesus disse: 'Eu vos farei conhecer todos os Mistérios da Luz e toda a Gnosis. Não cessai de procurar, nem de dia nem de noite, até que tenhais achado os Mistérios do Reino da Luz'." 
Pistis Sophia 

Parte II - Jesus gnóstico, o Aeon da salvação

Para Stephan A. Hoeller, Ph.D, diretor de estudos da Sociedade Gnóstica de Los Angeles, o gnosticismo é o ensinamento baseado na Gnose, ou seja, o conhecimento da transcendência a que se chega por meio da intuição e da vivência interior. Embora o gnosticismo se baseie assim na experiência religiosa pessoal, é errôneo acreditar que todas as experiências vividas nessa esfera sejam de natureza gnóstica. E mais exato dizer que o gnosticismo expressa uma experiência religiosa específica, uma experiência que não se exprime através da linguagem da teologia ou da filosofia, mas sim do mito. Com efeito, a maioria das escrituras gnósticas assume a forma de mitos. O termo "mito" não deve ser entendido aqui como "histórias que não são verdadeiras", mas como verdades que são expressas como histórias. O gnosticismo que conhecemos melhor desenvolveu-se entre seitas cristãs primitivas, até ser contido pela Igreja organizada. (1) 

Até meados do século passado, pouco material gnóstico havia chegado até nós, a maioria dos personagens e suas doutrinas só puderam ser conhecidos por meio dos heresiólogos críticos do gnosticismo. 

Por isso, a descoberta da Biblioteca de Nag Hammadi, em 1945, foi de suma importância, visto que seu conteúdo eminentemente gnóstico foi o responsável por impulsionar as pesquisas acadêmicas sobre o assunto na segunda metade do século XX. 

Estes manuscritos totalizavam cinquenta e dois textos, em treze códices de papiro, escritos em copta. Entre as obras aí guardadas encontravam-se diversos tratados gnósticos, três obras pertencentes ao Corpus Hermeticum e uma tradução parcial da República de Platão. Parte deles conhecidos também como Evangelhos gnósticos. 

Até a descoberta da biblioteca de Nag Hammadi, o Códice Askew era um dos três códices que continha quase todos os escritos gnósticos que tinham sobrevivido, sendo os dois outros códices o de Bruce e o de Berlim. 

Os Manuscritos Pistis Sophia, ou Códice Askew, atribuídos a Valentino, foram adquiridos do médico e colecionador de antiguidades, Dr. Askew, pelo Museu Britânico, em 1795. Datam de 250–300 DC e relatam os ensinamentos gnósticos do Mestre Jesus, o Cristo transfigurado, aos apóstolos. 

Mais recentemente, outro documento gnóstico foi encontrado, gerando diferentes especulações sobre o verdadeiro relacionamento de Jesus Cristo com o seu discípulo Judas, este documento é o Evangelho de Judas que estava desaparecido por mais de 1700 anos, tendo sido encontrado, finalmente, no Egito. (2) 

Portanto, para uma compreensão básica do significado de Jesus Cristo para os gnósticos cristãos primitivos, é necessário, primeiramente, empreendedor uma breve incursão no legado deixado por estes filósofos místicos da antiguidade, que compartilhavam de uma visão muito peculiar e distintiva daquele que foi, certamente, a personalidade histórica mais influente na formação da cultura ocidental nos últimos 2000 anos. 

Entretanto, neste ponto, precisamos formular uma questão urgente para o nosso momento planetária atual: recebemos, pela tradição cristã "oficial", os verdadeiros princípios postulados pelo Cristo? Acredito que não! 

E indo um pouco mais além: seria a descoberta da biblioteca gnóstica de Nag Hammadi um evento simbólico que marcaria o renascimento da verdadeira espiritualidade cristã para um mundo em crise? O resgate da verdadeira mensagem do Cristo para os nossos tempos? A tão anunciada segunda vinda do Salvador, neste caso, o despertar da centelha crística no âmago dos nossos corações? 

Especulações a parte, nos resta discernir, dos escritos gnósticos primitivos remanescentes, o quanto da verdadeira mensagem do Cristo nos foi negada ou deturpada pelas igrejas cristãs estabelecidas, e como poderíamos resgatar, internamente, a verdadeira luz do Cristo, e colaborar, coletivamente, com a superação da atual emergência espiritual planetária. 

Neste sentido, os textos apresentados a seguir foram organizados para oferecer uma visão panorâmica do gnosticismo cristão e demonstrar o quanto ainda necessitamos aprender com seus profundos insights e visões místicas sobre a real natureza da realidade, da condição humana e do verdadeiro papel do Cristo no alvorecer de uma nova humanidade transfigurada. 

Por L.C. Dias

Gnosis e Gnosticismo
Por G.R.S. Mead 

Até bem recentemente o estudo do Gnosticismo era tratado exclusivamente como um departamento de heresiologia ou, na melhor hipótese, como história da Igreja primitiva. O termo tem sido geralmente adotado para denominar um amplo movimento herético, em formas muito variadas, mas de uma tendência característica, exclusivamente dentro das fronteiras do Cristianismo nascente e em desenvolvimento. 

Nos últimos anos, porém, foi demonstrado, por diferentes linhas de pesquisas convergentes, que a noção de Gnosis, em seus elementos essenciais, era amplamente difundida antes do aparecimento do Cristianismo, principalmente entre os cultos dos Mistérios helênicos e das comunidades místicas, ou nas formas de religião pessoal em que elementos orientais e gregos eram misturados. 

Movimentos desta natureza, guardando como tesouro uma Gnosis interior, continuaram a existir em paralelo, mas inteiramente independentes da Igreja em crescimento nos três primeiros séculos. O Gnosticismo, então, não mais deveria ser considerado simplesmente como o nome de um ramo dentro da Igreja nascente. 

A Gnosis foi um fenômeno religioso muito mais amplamente difundido e deveria ser tratado como um elemento característico da história geral da religião. O que foi anteriormente chamado de Gnosticismo é visto, dessa forma, como sendo apenas um departamento, ainda que um departamento importante, da história da Gnosis. Seria preferível que fosse referido como a Gnosis cristianizada, ou como a Gnosis cristã, sendo que este último termo pode ser reservado especialmente para as opiniões de Clemente de Alexandria ou de Orígenes. 

A característica desta religião era que seus seguidores não esperavam entrar em comunhão com o mais elevado somente pelo esforço moral e pela fé em Deus, mas também por meio do pensamento, conhecimento, imaginação, sentimento. E era precisamente na Gnosis que eles viam a função mais elevada da religião. 

Porém, devemos ficar de prontidão contra a interpretação do pensamento como sendo puramente o intelecto racional. Pois, se os Gnósticos se posicionaram contra o mundo, não como filósofos, mas no duplo sentido de serem conhecedores e espirituais, devemos nos perguntar se, como o assunto do mundo espiritual é a Gnosis, o órgão deste modo de conhecer é precisamente o espírito. 

Se, além disso, o próprio espírito, como uma substância ou essência do mundo imaterial, é o órgão para a compreensão daquele mundo, então sua função característica de Gnosis não é nada mais do que a compreensão das coisas daquele mundo suprassensível. E, finalmente, se este mundo invisível é inacessível para nós em nosso estado natural normal e só pode se abrir a nós pela revelação, então o conhecimento espiritual ou Gnosis tem como objetivo nada mais do que a revelação. 

Segue daí que a posse da Gnosis significa a habilidade para receber e compreender a revelação. O verdadeiro Gnóstico é aquele que conhece a revelação interior ou oculta desvelada e que também compreende a revelação exterior ou pública velada. Ele não é alguém que descobriu a verdade a seu respeito por meio de sua própria desamparada reflexão, mas alguém para quem as manifestações do mundo interior são mostradas e tornaram-se inteligíveis. 

De acordo com a crença dos místicos, a Gnosis era acionada por meio de uma transformação essencial ou transmutação, levando a uma transfiguração. Primeiramente, havia uma 'passagem através de si mesmo', uma morte mística e, 'finalmente, um renascimento na natureza do ser espiritual de um deus. Sem dúvida, nos círculos internos dos místicos, o principal interesse era nesta apoteose ou transfiguração efetuada por meio da Gnosis ou da visão de Deus. Acreditava-se que a alma humana separada era transmutada numa natureza ou essência que era espiritual ou angélica. 

A Gnosis também é frequentemente descrita como uma 'senda', uma 'ascensão' gradual. Em suas concepções mais elevadas, no entanto, esta senda não é uma 'jornada celestial' psíquica; ao contrário, é um caminho espiritual imediato que se abre em qualquer aspecto da vida. Não é necessário 'deixar o mundo' para encontrá-lo, exceto no sentido de jogar fora de nós o 'supremo vício' ou 'o maior mal' que, em contraste com a suprema virtude da Gnosis, é chamado de ignorância de Deus, no sentido de uma força positiva de negligência proposital do divino. É uma questão de 'arrependimento', mas no sentido espiritual de um voltar de toda a natureza, isto é, de toda a vontade ser colocada em direção ao Bem. 

Este caminho de retorno é simbolizado indiferentemente como uma senda, uma viagem, ou a subida de uma montanha. Que a Gnosis era essencialmente religiosa ou espiritual e não intelectual, já foi plenamente estabelecido, mas pode ser confirmado com autoridade pela seguinte declaração categórica com referência à visão do Belo e do Bem: "Só há uma forma que leva a ele: devoção juntamente com Gnosis" (C.H., VI. 5). A entrada na senda da Gnosis é chamada 'voltar para casa'. Como vimos, é um retorno, um virar as costas ao mundo, um arrependimento de toda natureza: "Devemos nos voltar para o velho, velho caminho" (C.H., IV. 9). Ingressar na Gnosis é um despertar do sono e da ignorância de Deus, da embriaguez do mundo para a temperança virtuosa. "Pois o mal [ilusão] do não conhecimento está inundando toda a terra e trazendo total ruína à alma aprisionada dentro do corpo, impedindo-a de navegar para os portos da salvação." (C.H., XII. 1) 

No entanto, considerado do ponto de vista soteriológico, ou em relação à teoria da salvação, a senda não surge a partir da própria pessoa, mas pela descida do Salvador, tanto nas formas de Gnosis pré-cristãs como nas formas cristianizadas. Desse modo, na conclusão do bem referido hino Naasseno, baseado em material pagão e oriental, Jesus é descrito como dizendo: "Com brasões em minhas mãos descerei; ao longo de todos os eons do universo eu construirei um caminho; revelarei todos os mistérios e manifestarei as formas que os deuses apresentam". 

A posse da Gnosis, portanto, confere 'autoridade', um termo intercambiável com 'poder' num sentido Gnóstico. Abundantes evidências adicionais poderiam ser adiantadas, mas já foi dado o suficiente para demonstrar que a idéia fundamental da Gnosis é a transmutação num ser espiritual e isso é fundamentalmente uma idéia religiosa oriental, a antípoda da filosofia em seu significado moderno comum visto como a elaboração de um sistema intelectual. A Gnosis é, portanto, acompanhada de visão e revelação no sentido que as citações anteriores já deveriam ter tornado claro. Além disso, seria fácil demonstrar que estas são também as características gerais da Gnosis nos sistemas cristianizados. (3) 

Gnosticismo Cristão 

O pré-requisito essencial da filosofia gnóstica é o postulado da existência de uma “entidade imortal”, que não é parte deste mundo, que pode ser chamado de Deus interno, Centelha divina ou crística, divina essência, etc, que existe em todos os homens e é a sua única parte imortal. Os gnósticos consideram que o estado do homem neste mundo é “antinatural”, pois ele está submetido a todo tipo de sofrimentos. Para eles, é necessário que o homem se liberte deste sofrimento, e isto só pode ocorrer pelo conhecimento. 

Os gnósticos, de um modo geral, acreditavam que o Universo manifestado principia com emanações do Absoluto, seres finitos chamados de Æons que se reúnem no Pleroma. No princípio tudo era Uno com o Absoluto, então em um determinado momento, emanaram do Absoluto estes éons, formando o pleroma. O pleroma dos gnósticos é um plano arquetípico, abaixo do qual está o plano material, manifestado. Assim, o que antes era Uno, vivia no pleroma, se despedaça em partes, e este gera um estado de infelicidade, pela descida no pleroma (e separação do Todo Uno), é o que ocasiona o sofrimento do homem neste mundo. 

Um dos éons, Sophia, deu à luz ao Demiurgo (artesão em grego), que criou o mundo material “mau”, juntamente com todos os elementos orgânicos e inorgânicos que o constituem. Os gnósticos ensinavam que a salvação vem por meio de um desses éons, geralmente apresentado como o décimo terceiro éon, distinto dos doze éons que regem o mundo decaído. Segundo a doutrina, Cristo se esgueirou através dos poderes das trevas para transmitir o conhecimento secreto (gnosis) e libertar os espíritos da luz, cativos no mundo material terreno, para conduzi-los ao mundo espiritual mais elevado. 

Segundo algumas linhas gnósticas, Cristo não veio em carne e nunca assumiu um corpo físico, nem foi sujeito à fraqueza e às emoções humanas, embora parecesse ser um homem. Enquanto a principal linha de gnosticismo cristão, a Valentiniana defende a tese próxima do nestorianismo, doutrina cristã, nascida no Século V, segundo a qual há em Jesus Cristo duas pessoas distintas, uma humana e outra divina, sendo Cristo (o ungido) o éon celestial que a um tempo se une a Jesus. 

Alguns historiadores afirmam que o apóstolo João se refere a esse assunto quando enfatiza que “o Verbo se fez carne” (Jo l .14) e em sua primeira epístola que “todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus…” (l Jo 4.3). Os escritos joaninos são do final do primeiro século, quando floresceu o gnosticismo cristão. No entanto, muitas comunidades gnósticas tinham o Evangelho de João em alta conta. (4) 

Cristo, libertador atemporal 
Por Stephan A. Hoeller 

As pessoas que estão superficialmente familiarizadas com o gnosticismo concluem muitas vezes que para o gnóstico a salvação ou libertação é uma experiência sem mediador, que não requer um salvador. Nada poderia estar mais longe da verdade. O espírito humano, dizem os gnósticos, veio de fora para este mundo, portanto, o estímulo para a libertação também deve vir de fora. Na verdade, potencial espiritual libertador reside nas profundezas (ou melhor, nas alturas) da própria alma humana, porém a realização deste potencial requer uma poderosa intervenção. Esta assistência é realizada por seres a quem determinadas escolas de gnosticismo chamam de mensageiros da Luz, figuras messiânicas, salvadoras, enviadas pela Divindade mais elevada. 

No gnosticismo cristão, este grande estrangeiro é Jesus. Em várias escrituras da tradição gnóstica ele é chamado de Logos; em outras, o Soter (curador, salvador); e, em muitas outras, o Cristo (o ungido). A relação exata destes nomes entre si nem sempre é clara. Existem indicações de que os gnósticos aceitavam que o Cristo espiritual desceu e entrou na pessoa de Jesus no momento do seu batismo no rio Jordão pelas mãos de João. Mas Jesus também foi considerado como um ser sagrado e sobrenatural desde o nascimento. 

Resumindo, a salvação para os gnósticos não significa uma reconciliação com um Deus zangado através da morte do seu filho, mas uma libertação do estupor induzido pela existência terrena e um despertar pela gnose. Eles não consideram que qualquer tipo de pecado, incluindo o de Adão e Eva, seja poderoso o suficiente para causar degradação de todo o mundo manifesto. O mundo é falho porque esta é a sua natureza, porém os seres humanos podem se libertar do confinamento neste mundo falho e da inconsciência que acompanha este confinamento. Jesus veio como mensageiro e libertador, e aqueles que assumem no coração esta mensagem e participam dos seus mistérios são, como o discípulo Tomé, salvos pela gnose. 

Uma das principais objeções dos mulçumanos à visão cristã de Jesus é que ele é chamado de filho de Deus. Aos olhos mulçumanos, é inconveniente dizer que Deus teve um filho, pois a procriação é uma atividade da carne, por isso abaixo da dignidade da divindade. Enquanto as escrituras gnósticas se referem livremente ao Pai, Filho e Espírito Santo, elas não equiparam Jesus à segunda pessoa da Trindade em qualquer padrão explícito. O assunto da filiação não era importante para eles. Como os muçulmanos, eles devem até ter se protegido contra isso. Jesus, o ungido (Christos), para eles, foi um éon misterioso, um grande poder espiritual que desceu sob a forma de um mensageiro para a humanidade. 

O Jesus Cristo gnóstico é verdadeiramente muito mais do que o filho do carpinteiro de Nazaré. De certa maneira, ele é também mais do que o precisamente definido e descrito filho de Deus dos teólogos. Se o Jesus gnóstico parece um paradoxo e enigma para alguns, é porque a percepção gnóstica de Jesus se origina na experiência da gnose. Os gnósticos viam Jesus com olhos visionários. Para eles, ele era um ser transcendental um habitante de outra dimensão ou reino que temporariamente se viu na Terra. Para conhecer Jesus é preciso receber a gnose. Então suas palavras, seus atos, seu próprio ser serão revelados e inteiramente compreendidos. Atualmente, após dois mil anos inteiros de história cristã, o grande enigma messiânico ainda nos chama e nos pede para compreendê-lo com a mente e percepção da gnose. Sobre aqueles que o viam com olhos prosaicos, ele ainda diz: 

"Pareço a eles um estrangeiro porque sou de outra raça." (Odes de Salomão 41) 

Contudo, para os gnósticos ele será para sempre o estrangeiro luminoso que nos lembra que também somos de um outro mundo, para o qual ele pode nos ajudar a retornar. (5) 

Considerações Finais 

Na próxima postagem sobre a temática cristológica, serão tratados os aspectos mais internos dos ensinamentos do Cristo na perspectiva dos movimentos esotéricos modernos. Esta difusão do saber esotérico, ocorrida em meados do século XIX, após séculos de perseguição das igrejas cristãs, foi responsável pela infusão de um novo ímpeto espiritual para a civilização ocidental, que resultou, posteriormente, no surgimento do movimento espiritualista contemporâneo conhecido como Nova Era.

Neste ponto, cabe salientar que muitas das ideias que foram resgatadas e remodeladas pelo esoterismo moderno, tiveram sua gênese na sabedoria gnóstica cristã dos primeiros séculos da era comum, demonstrando, de forma inequívoca, a continuidade, nos bastidores da história "oficial", de uma autêntica tradição esotérica cristã, que poderia ser rastreada - caso tivéssemos a capacidade gnóstica para tanto - para muito além dos confins da história humana conhecida.

Entretanto, não devemos olvidar que muitas das verdades mais profundas emitidas pelo Cristo foram preservadas, de forma velada e simbólica, nos evangelhos canônicos, apesar dos infindáveis erros cometidos pelos copistas - a maioria deles já identificados pelos estudiosos neo-testamentários - como também, das adulterações promovidas pela igreja apostólica romana, durante séculos, antes do advento da imprensa de Gutenberg.

Neste sentido, vale destacar o mais gnóstico dos evangelhos canônicos, o quarto, de João evangelista, e citar o mais conhecido "mantra" gnóstico revelado na "boa nova" joanina:

“Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará!” (Jo 8,32)

Antes de finalizar esta exposição, gostaria de propor a seguinte digressão conspiratória neste momento crítico de transição planetária: poderia ser encontrado um encadeamento para eventos, a princípio, tão díspares quanto o lançamento da bomba atômica em Hiroshima/Nagasaki e o fim da segunda grande guerra (1945), a descoberta da biblioteca gnóstica de Nag Hammadi (1945), a disseminação do fenômeno UFO (1947), a fundação do Estado de Israel (1948), a descoberta dos manuscritos do Mar Morto (1949) e a invasão comunista chinesa ao Tibet (1950), com a consequente diáspora tibetana e difusão do budismo tibetano no ocidente (1950)? Como poderíamos relacionar, de forma significativa, inspirados pela sabedoria legada pelos gnósticos, esses eventos mundiais de luz e trevas, que parecem prefigurar uma suposta dialética maniqueísta global, e que provocaram profundas repercussões no campo da cultura, política e religiosidade?

Como uma das respostas possíveis, para aqueles que estão abertos para uma abordagem heterodoxa do gnosticismo, recomendo, com cautela, a leitura do artigo Approaching Gnosticism: Through the Eye of the Heart, de John Lash, um controvertido estudioso do assunto. Considerado como herético pelos heréticos, Lash defende uma visão radical, de matiz conspiratória, da mensagem gnóstica original, mas que merece, com certeza, ser avaliada com discernimento, lucidez e imparcialidade, pois pode desvelar vários elementos valiosos para uma reflexão alternativa sobre o gnosticismo e sua importância para uma compreensão mais abrangente dos fatos ocultos que subjazem à atual crise planetária.

Encerro esta publicação com as seguintes reflexões feitas por Leloup sobre o Jesus gnóstico apresentado no Evangelho de Tomé:

“Quando Jesus pergunta aos discípulos: 'Para vós, quem sou eu?' , Tomé recusa-se a responder. 'A minha boca não é capaz de dizer com quem te pareces' . Ele procede bem. O próprio Jesus permanece calado, quando Pilatos lhe faz a pergunta 'O que é a Verdade?'. Assim, antes de dizer que Jesus 'é isto ou aquilo' , sem dúvida, é necessária ficar em silêncio durante muito tempo, exatamente à maneira dos gnósticos que não são teólogos preocupados em dar nomes ao inominável, mas que praticam a douta ignorância. 'Jesus É o que Ele É' . Ninguém nunca chegou a 'vê-lo totalmente'. Ele limitava-se a afirmar, com força e amor, um puro e simples 'Eu sou'; no entanto, essa afirmação não deixa de despertar um misterioso eco em cada um de nós.” (6)

Organizado e compilado por L.C. Dias

Notas: 
(2) Adaptado do material publicado em Para além do Gnosticismo
(3) A Gnosis Viva do Cristianismo Primitivo, G.R.S. Mead, Núcleo Lux, 1995.
(4) Ibidem nota 2
(5) Gnosticismo, Stephan A. Hoeller, Nova Era, 2005.
(6) O Evangelho de Tomé, Jean-Yves Leloup, Vozes, 2009.

Leitura complementar:


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