Por Norman Fischer
Como os seres humanos podem conceber o impossível (bondade absoluta, beleza perfeita, verdade) e ansiar por isso? Como podemos ter sentimentos apaixonados sobre coisas imaginárias intangíveis, como liberdade e justiça? Como vemos sem olhos, desejamos sem objetos, ouvimos música onde não há música e então criamos a música que existe? Como concebemos histórias que nunca aconteceram, imagens que ganham vida a partir de superfícies planas? O que é essa estranha capacidade humana?
A imaginação expande nossos corações e mentes. Ela traz inovação à tona: artística, científica, social. Ela gera mito, cultura, religião e progresso material. Todo idealismo e visão moral dependem da imaginação, assim como o amor. Ir além de suas próprias necessidades materiais e práticas para cuidar amorosamente do outro é o maior gesto que podemos imaginar. O amor não é racional ou prático. Não é impulsionado por dados ou performance. Embora possa incluir necessidades animais ou psicológicas, suas raízes são mais profundas.
Mas a imaginação tem um outro lado. Ela também é enganosa e destrutiva. A imaginação pode distorcer a realidade, nos preenchendo com distração e confusão. Uma dose muito forte de imaginação pode levar à loucura. Paranoia é a imaginação descontrolada. Graças à imaginação, podemos desejar o que nunca poderemos ter e, portanto, ficamos constantemente insatisfeitos, até mesmo enlouquecidos.
A imaginação nos leva a atos destrutivos, inflando nosso medo ou grandiosidade além de qualquer medida. Sem a imaginação não haveria armas, guerras e genocídios. Para construir a bomba atômica, para perpetrar holocaustos, tivemos que imaginá-los e então imaginar os meios técnicos que os fizeram possíveis.
Não é de surpreender então que para Platão e para outros pensadores gregos, a imaginação fosse suspeita. Imaginação, a inimiga da razão, era perigosa. Platão sustentava que o pensamento lógico e reflexivo era tudo o que era necessário para levar o coração à verdade e à bondade. Para ele, a imaginação era subversiva, sua atração e cor poderiam nos induzir ao erro. Ele celebremente excluía poetas de sua república ideal. (Aparentemente nunca ocorreu a ele que "A República" era, ela mesma, uma projeção imaginária.)
Gerações posteriores de filósofos viraram de cabeça para baixo a suspeita de Platão acerca da imaginação. No século 18, Immanuel Kant viu a imaginação como “um ingrediente necessário da percepção” e “uma faculdade fundamental da alma humana”. Ele viu a imaginação como central para a consciência humana, literalmente criando o mundo que percebemos e habitamos. Kant chegou a essa visão porque, em seu tempo, havia ficado claro que nós não percebemos o mundo numa correspondência direta um por um.
De fato, a percepção por si só, nosso sentimento e experiência de estar no mundo, envolve uma subjetividade criativa bruta. A consciência é mais do que uma máquina registradora de dados. Como a ciência cognitiva contemporânea confirma, a consciência é criativa. Nossos cérebros, nossas mentes, nossas experiências passadas e memórias, nossos corações, nossas almas criam o que vemos, ouvimos, saboreamos, tocamos, cheiramos e sentimos. Nós, de fato, imaginamos o mundo.
O poeta inglês Samuel Taylor Coleridge foi a primeira pessoa de língua inglesa a viajar para o continente para absorver o novo pensamento que Kant expressava de forma tão persuasiva. Como um poeta, sempre apreciei a definição clássica de imaginação de Coleridge, uma referência importante sobre imaginação no pensamento ocidental:
"A IMAGINAÇÃO [que Coleridge coloca em letra maiúscula], então, eu considero tanto como primária, ou secundária. A IMAGINAÇÃO primária, eu considero ser o Poder vivo e o agente principal de toda Percepção humana, e como uma repetição na mente finita do ato eterno da criação no infinito EU SOU."
De acordo com Coleridge, a imaginação “primária” cria o mundo em que vivemos, o lugar da jornada humana. Seres humanos, criados à imagem divina, imitam Deus em criar seu mundo com cada ato de percepção e pensamento. A imaginação “secundária” de Coleridge é o que usualmente pensamos como criatividade. Ela aprimora nossas almas, refinando e aprofundando nossas imaginações primárias. Para Coleridge, que foi treinado como um clérigo e como um poeta, a religião e as artes são as esferas nas quais a imaginação secundária funciona e se desenvolve.
Coleridge distingue ainda as imaginações primária e secundária do que ele chama de fantasia. Se a imaginação é a função essencial da busca da realidade, a fantasia é o desejo pela realização de desejos, uma projeção da nossa natureza animal movida pelo ego. Como a imaginação, a fantasia nos liberta do peso esmagador de um mundo limitado. Mas ela não o faz de um modo positivo, criativo, mas em resposta aos nossos apetites e frustrações. Ela nos distrai, aumenta nossa insatisfação, nos leva a atos loucos e destrutivos. Ao fazer essa distinção, Coleridge parece ter resolvido o problema da natureza dupla da imaginação.
Fantasia é a imaginação que é suspeita. Ela pode ser inofensiva, mas, se muito distorcida pelos impulsos humanos mais básicos, pode se tornar equivocada. Imaginação, por outro lado, quando cultivada e refinada, sempre nos enobrece. É assim que entendo o que Coleridge está dizendo.
A noção de imaginação também é central no trabalho de Percy Bysshe Shelley, um poeta inglês romântico da segunda geração. Seguindo Colleridge, Shelley entende que o propósito da imaginação é o cultivo espiritual e moral da alma – não a mera produção de objetos atraentes, belos, divertidos ou até mesmo edificantes.
Em seu famoso ensaio “A Defesa da Poesia”, ele combina imaginação e poesia, ampliando a ideia de “poeta” para incluir não somente escritores, mas qualquer um cujo trabalho dependa da faculdade imaginativa, incluindo cientistas, legisladores e todos os inovadores sociais e morais.
Para Shelley, a imaginação define nossa humanidade básica: ela é, escreve, “inerente à origem do homem”, a fonte de toda bondade humana, de todo idealismo e amor. A razão está para a imaginação como “o instrumento está para o agente, o corpo para a alma”, uma ajuda, uma ferramenta. A imaginação “levanta o véu da beleza oculta do mundo... E apreende sua misteriosa maravilha”.
(Norman Fischer)
FONTE: Excerto do Capítulo 1 do livro "O mundo poderia ser diferente: imaginação e o caminho do bodisatva".
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