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Philip Dick e a gênese de uma mitologia planetária

Por L.C. Dias

"Em um sentido muito real, a dor que sentimos como criaturas vivas é a dor do despertar ... a pressão dessa dor nos motiva a buscar respostas ou, o que é o mesmo, nos motiva para uma maior consciência"
***
"Se a felicidade existe, ela deve surgir da entrega voluntária de alguém em troca da participação consciente no destino da unidade total".
***
"O lance sobre o futuro..., é que toda vez que você olha para ele; Ele muda, porque você olhou pra ele. E isso muda todo o resto."
***
“As vezes a resposta apropriada para a realidade é se tornar insano.” 
***
“Realidade é aquela coisa que não desaparece quando você deixa de acreditar nela.”
Philip K. Dick

Para os entusiastas da ficção científica, Philip K. Dick, falecido em 1982, é mais conhecido como o autor do romance “Do androids dream of electric sheep?”, que foi a principal fonte de inspiração de Ridley Scott para a criação do filme “Blade Runner – Caçador de androides”, considerado um clássico do gênero. Entretanto, além da esfera literária, atualmente existe uma legião de seguidores de Dick que o veneram como um dos maiores visionários e mestres espirituais do nosso tempo.

Idolatrias à parte, a vida de Dick envolveu relatos de contatos com entidades alienígenas, experiências místicas, revelações metafísicas, sonhos míticos, abuso de drogas e o diagnóstico de esquizofrenia. Talvez, esta variedade de vivências extraordinárias possam explicar a originalidade, excentricidade e o conteúdo muitas vezes perturbador de suas obras. 

Uma amostra dessas ocorrências paranormais que impregnavam, cotidianamente, a paisagem mental de Dick podem ser resgatadas a partir da história contada, em quadrinhos, por Robert Crumb, publicada em 1986 na Revista Weirdo nº 17, sobre a experiência mística de Dick retratada no romance "Valis". (1)

Em Valis, que é uma espécie de alegoria biográfica do próprio autor, é apresentada a vida de Horselover Fat, sempre repleta de paranoia e episódios depressivos. Apesar de tentar ajudar os amigos, Fat nunca obteve muito sucesso. Presa de sentimentos confusos e pensamentos intrincados, ele ocasionalmente flertava com a ideia do suicídio. Mas tudo muda quando Fat (ou Phil, a distinção nem sempre é clara) é atingido por um intenso feixe de luz rosa. A partir de então, dá início a uma verdadeira jornada pessoal para entender o que aconteceu: se foi um momento de loucura ou se, de fato, uma entidade divina se revelou para mostrar-lhe a verdadeira natureza do mundo. Transitando entre a mística religiosa, o gnosticismo e a tecnologia extraterrestre, Fat sai em busca de um messias reencarnado que já teria passado pela Terra e acaba percebendo que as fronteiras da realidade começam a ficar cada vez mais difusas. 

Portanto, levando em consideração este conturbado contexto biográfica de Dick, fico inclinado a concordar com Fábio Ochôa quando afirma que "em um certo sentido, os traumas que o acompanharam ao longo de toda a vida nasceram com ele. Phillip K. Dick teve uma irmã gêmea. Em 1928, ela morreu de desnutrição semanas após o nascimento devido a uma rara alergia ao leite materno. A menina foi enterrada em uma sepultura dupla. Na lápide, o seu nome e o de K. Dick. PKD sempre teve a sensação de ser assombrado pela irmã desde os primeiros anos de vida. Com o tempo, à medida que seu abuso de drogas prosseguia e suas doenças mentais se agravavam, sua obsessão pelo suposto espectro da irmã aumentariam. Ele tinha vergonha de ser visto se alimentando e o conceito do duplo, do gêmeo fantasma, seria uma constante em sua obra." (2)

Na verdade, Dick usou a ficção científica como veículo para as estórias (ou paranoias?) que ecoavam na sua cabeça. Mesmo nos primeiros contos, escritos em abundância para revistas de Sci-Fi, o fundamental não era a vida alienígena ou a ameaça das máquinas, mas os seres humanos e os fundamentos do real.

Poucos terão escrito tanto sobre a mesma coisa: 44 novelas, 121 contos, muitos textos dispersos e uma obra mastodôntica chamada Exegesis, 8000 páginas de impenetrável escrita automática, produzidas ao longo de 8 anos e apenas editadas em 2011. Dick foi sempre coerente na sua dúvida, colocou tudo em questão, até ele próprio, e acabou por contagiar os seus leitores e, de certo modo, o mundo. A sua mania por conspirações acabaria por antecipar algumas realidades atuais e alimentar a indústria de Hollywood durante décadas. (3)

Apesar da trilogia cinematográfica Matrix não estar diretamente ligada a um livro de Dick, as três películas incorporaram os principais temas do seu pensamento, superando, na maioria das vezes, os filmes diretamente adaptados a partir de suas obras. Os elementos clássicos de Dick estão presentes nesta saga futurista criada pelos irmãos Wachowski: paranoia, uma realidade sempre em mudança, questões sobre livre-arbítrio e identidade pessoal.

Acredito que a obra de Dick seja uma das forças propiciadoras do despertar contemporâneo pelo gnosticismo para um público mais amplo, fora da esfera acadêmica. Tal despertar talvez indique a necessidade de suprir de sentido um segmento da humanidade, principalmente ocidental, que clama por alimento espiritual, mas que continua desiludida em relação a qualquer informação advinda das instituições estabelecidas, sejam elas midiáticas, científicas, políticas ou religiosas.

Como exemplo da poderosa influência deste renascimento, cito a seguinte descrição metafórica (literal?) dada à Matrix, que vem contagiando um conjunto cada vez maior de pessoas comprometidas com o despertar para o real significado da vida humana neste planeta:

"O que é a Matrix? Escola ou prisão, depende da perspectiva escolhida. Por um lado, é um sistema de ensino hiper-dimensional que acelera o seu ritmo de evolução espiritual, proporcionando-lhe experiências catalíticas em resposta aos seus pensamentos, emoções e status espiritual. Por outro lado, muitas dessas experiências se manifestam como forças predatórias que atacam suas fraquezas. Naturalmente, a única maneira de evitar ser manipulado por essas forças é descobrir, integrar e transformar suas fraquezas em forças, realizando indiretamente o propósito mais elevado da Matrix, que é ajudá-lo a transcendê-la. Não obstante, essas forças predatórias possuem livre arbítrio e têm sua própria agenda, que é expandir sua base de poder e sustentar-se alimentando-se das energias emocionais da humanidade, bem como impedindo que qualquer pessoa se conscientize o suficiente para adicionar influências desestabilizadoras à prisão espiritual que foi gerada na Terra. A soma total de seu sistema de manipulação hiperdimensional pode ser chamada de “Sistema de Controle da Matrix”. É uma escola de duros golpes que enfraquece os espiritualmente fracos e fortalece os espiritualmente fortes, de acordo com sua escolha de serem vítimas ou guerreiros." (4)

Esta concepção arquetipica da realidade está dando corpo a uma mitologia da Matrix, com fortes traços maniqueístas, que vem enriquecendo de sentido uma geração alienada pelo materialismo, relativismo e individualismo próprios da cultura secular pós-moderna. Na gênese desta nova mitologia estão enraizados os enredos míticos ancestrais atualizados e revitalizados por pensadores visionários como Dick.

No entanto, vale salientar que antes de Dick, estas ideias já haviam sido "despertadas" por alguns dos maiores mestres espirituais da primeira metade do século passado. Em Steiner, encontramos o embate "espiritual" entre as legiões luciféricas e arhimânicas contra as forças crísticas do Arcanjo Micael. Para Gurdjieff, o desafio foi a criação de uma fantástica aventura épica como a apresentada em “Relatos de Belzebu a Seu Neto". Já Aurobindo fez uma releitura da mitologia hindu relacionada aos Asuras.

Todos esses relatos míticos já alertavam para a existência de forças adversas que, desde o alvorecer da humanidade, conspiram nos bastidores da vida contra a liberdade, a fraternidade e a paz entre os povos. Entretanto, a maioria desses mestres fizeram uso de uma linguagem "carregada"  de símbolos das tradições religiosas ou esotéricas, o que muitas vezes dificultava a compreensão desta temática de matiz conspiratória para o público em geral ou provocava a aversão por aqueles que adotavam uma postura mais cética e preconceituosa em relação a assuntos de natureza metafísica. 

Como exemplo, faço a seguinte citação de Aurobindo:

"Esta é a Dualidade no trabalho. Não pode haver progresso sem oposição. Não se pode nem correr sem ter um solo duro debaixo do pé, cuja oposição tem que ser empurrada para poder correr. Estas duas forças estão sempre em operação, o Divino que se move para a frente e o Asura ou o Titã que se opõe. O Asura é também o Divino, mas foi dado a ele este trabalho de oposição e faz o seu trabalho muito, muito bem. Na verdade, funciona tão bem que hoje o mundo inteiro está sob sua influência e o Divino tem que empurrar o mundo através de cada passo. Portanto, são necessários instrumentos que estejam abertos e possam ser usados." (5)

Portanto, não temas o mal! Tudo tem um sentido maior dentro do grande arcabouço da criação. Sejamos humildes em reconhecer a nossa ignorância, como sempre fizeram os grandes mestres iluminados da humanidade que, periodicamente, por misericórdia e compaixão, visitam este pequeno planeta azul, localizado em um dos 100 bilhões de sistemas solares que compõem a nossa via-láctea, uma dentre as 100 bilhões de galáxias conhecidas pela nossa instrumentação científica atual, ou seja, totalizando 10 sextilhões de estrelas (10 seguido de 21 zeros), porém, uma estimativa que leva em conta, somente, o que os astrônomos chamam de universo visível, ou seja, aquele cuja luz chega até nós.

Apesar desta pequena digressão, é importante frisar que para esses mestres visionários, que baseavam seus relatos em experiências diretas dos planos mais sutis da natureza, estas forças adversas não ocupam, somente, o campo psicológico do imaginário, mas são entidades reais, cuja a existência não pode ser concebida sem o uso da elaboração mítica, pois estão muito além das limitações cognitivas da esmagadora maioria do contingente humano que habita o nosso planeta. Muitos deles afirmaram de forma categórica que essa suposta "guerra nos céus" foi dramaticamente intensificada durante a segunda grande guerra. Vejamos o seguinte testemunho de Aurobindo, ocorrido no período do conflito mundial, sobre a relação de Hitler com os asuras:

"É um Ser (Asura) muito poderoso. Paul Richard estava em comunhão com este Ser e os planos e métodos que ele escreveu em seu livro "Senhor das Nações", são os mesmos que estão sendo realizados agora. Ele disse que a civilização atual deve ser destruída, o que significa a destruição dos valores humanos de civilização como ocorreram na Alemanha de Hitler... Ele destruiu esses valores onde quer que tenha ido. Os seres humanos por si só não são páreo para os Asuras... No caso de Hitler, não é uma influência, mas uma possessão, talvez até mesmo uma encarnação. O caso de Stalin é semelhante. O mundo vital desceu sobre o físico. É por isso que os intelectuais estão ficando perplexos com a destruição de sua civilização, de todos os valores que haviam amado e defendido. Eles negam a existência do mundo além do físico e, portanto, são obrigados a ficar perplexos." (5)

Tudo o que foi dito acima é uma questão de acreditar, ou não, no relato de terceiros ou da  constatação direta dessas realidades sutis, o que nem sempre é possível para todos os interessados. 

São tentativas de explicar ou justificar o inexplicável, o grande mistério da vida. Para ratificar a visão que sustento sobre o tema, cito uma passagem do artigo "Conspirações e a transição planetária", postado anteriormente no blog:

"Por mais que desejemos superar a noção dualista herdada pela tradição judaico-cristã em relação a personificação de um suposto mal metafísico, buscando substituir anjos caídos por ETs maléficos, o sentido final da narrativa mítica continua sempre o mesmo, uma busca por justificativa para a nossa imperfeita e sofrida condição humana, a intuição profunda que algo deu errado, que a realidade em que vivemos foi desvirtuada por um poder que insiste em desafiar a ordem, a sabedoria e a benevolência que deveriam governar, soberanamente, em todos os recantos do universo. Possivelmente, a incômoda constatação de uma impossível teodiceia.

Se esta busca por justificativa é uma projeção de caráter psicológica ou uma intuição real, é uma questão ainda em aberto, cuja a resolução pode ou não passar pelas teorias da conspiração.

Certamente, muitos dirão que tudo isso não passa, no mínimo, de passatempo para excêntricos, desocupados e paranoicos, estórias da carochinha para aqueles que inconscientemente não querem enfrentar os grandes dilemas que a vida real nos impõe. Talvez os céticos tenham razão. Mas talvez a razão solitária não seja suficiente para enfrentar o excêntrico, o fantástico e até mesmo o paranoico, que perpassa de forma oculta, inconsútil, os alicerces da realidade em que vivemos, ou melhor dizendo, na qual estamos aprisionados, como diriam as mentes de matiz conspiratória.

Mas acredito que onde há fumaça sempre existirá fogo, não sei se uma chispa ou um incêndio, portanto, se estivermos dispostos a nos abrir a outras possibilidades, com maturidade e discernimento, sem abandonar o bom senso e a razão, é possível que um novo entendimento seja conquistado, e o preconceito que conspira contra a imparcialidade, seja substituído pela investigação sincera e imparcial, e assim, estaremos municiados com ferramentas mais adequadas para separar o joio do trigo neste vasto campo das conspirações." (6)

Neste ponto, acredito que seja oportuno esclarecer o uso que faço da palavra mito. A utilizo no mesmo sentido atribuído por Joy Mills no seu estudo da obra "A Doutrina Secreta", de Blavatsky:

"Mito não significa que o que foi apresentado não seja verdadeiro, mas o mito nos dá, ou expressa em si, a linguagem da alegoria e da metáfora - portanto, ele diz respeito à consciência. Como sabemos, na filosofia esotérica, a consciência é primordial. Ela é o fundamento de toda existência, de todas as aparências. (...) O que vamos analisar são aqueles princípios que podemos chamar de "motivos arquetípicos" pelos quais a Face Original expressa-se na manifestação. Essa é a função do mito: que nós, por meio dele, cheguemos a uma apreciação da unidade original. (...) Sugiro que, ao considerarmos a Doutrina Secreta como um mito, isto torna a apresentação menos assustadora, pois não temos que nos preocupar com o que se poderia chamar de "seu caráter fatual", se é que se trata de um fato ou não - isto aconteceu ou não? Quando ocorreu? A narrativa é precisa em todos os detalhes? - uma vez que, aqui, estamos envolvidos com arquétipos, com modelos e com as suas imagens na consciência humana. (...) Mas por estar preocupada com o objetivo central de A Doutrina Secreta - que, repito, é transformar a consciência a partir do íntimo, de modo que o cosmo reflita com mais precisão os princípios ordenadores do caos interessa-me saber como o mito pode despertar em nós esse aspecto da realidade que nos permitirá sermos co-criadores deste processo.(...) Os mitos da criação são os mais profundos e importantes de todas as exposições mitológicas. Vocês podem não percebê-lo, mas os nossos mitos refletem aquilo que pensamos a nosso respeito. Eles modelam a nossa visão de mundo." (7)

Para finalizar, recomendo - para todos aqueles que pretendem se aprofundar e compreender a nova mitologia planetária emergente - que sigam as mesmas orientações dadas pela própria Blavatsky aos seus discípulos, meses antes de sua morte, para o estudo da cosmogonia oculta revelada na sua obra magna A Doutrina Secreta (DS):

"Venha para a DS sem qualquer esperança de conseguir a Verdade final sobre a existência, e sem qualquer outra ideia além de descobrir o quanto ela pode conduzí-los EM DIREÇÃO à Verdade." (8)

Neste sentido,  a obra visionária de PKD, como é conhecido pelos seus seguidores, pode ser considerada como uma nova abordagem mítica da realidade, podendo ser de grande valia para a compreensão e superação da atual crise planetária que estamos enfrentando.

A seguir, um artigo que sintetiza os princípios que fundamentam o universo ficcional de Dick, em especial, sua forte influência budista, que, muitas vezes, é negligenciada pelos especialistas em favor de um enfoque predominantemente gnóstico. 

L.C. Dias

Notas:

(1) A Experiência Religiosa de Philip K. Dick - Por Robert Crumb
(2) PHILIP K. DICK: Mais Estranho que a Ficção
(3) Philip K. Dick, o homem que sabia demais
(4) What is the Matrix?
(5) Twelve years with Sri Aurobindo, Nirodbaran, publicado por Sri Aurobindo Ashram - Pondicherry.
(6) Além da Crença - Conspirações e a transição planetária
(7) O Despertar de Uma Nova Consciência - Idéias Centrais de 'A Doutrina Secreta', Joy Mills, Editora Teosófica, 1993.
(8) Fundamentos da Filosofia Esotérica: Extraídos da Obra de H. P. Blavatsky, Editora Teosófica, 1993.

Como sair da Matrix, segundo Philip K. Dick

Por Alejandro Martínez Gallardo

Philip K. Dick disse em uma conferência em 1977 : "Vivemos em uma realidade programada computacionalmente e a única pista que temos é quando uma variável é alterada e ocorre uma alteração em nossa realidade". Suas idéias, sem dúvida, prefiguram a noção desenvolvida na trilogia The Matrix . Uma série que, como observou o professor Robert Thurman, tem notáveis influências budistas (a Matrix do Budismo é chamada samsara) e que produziu a grande metáfora do nosso tempo para se referir a uma sensação milenar: a suspeita de que o mundo é vivenciado convencionalmente como uma ilusão.

Em sua reflexão labiríntica e obsessiva sobre uma série de visões místicas que ocorreram em 2/3/74, encarnadas em The Exegesis, curiosamente Dick, um gnóstico cristão, dá como possível saída deste labirinto ilusório que hoje chamamos de Matrix o caminho do bodhisattva. Dick fala sobre o protagonista de um texto que ele pensou em intitular The Owl:

"Só escapa verdadeiramente ao labirinto quando decide voltar voluntariamente (reenviado ao poder do labirinto) para beneficiar aqueles que permanecem presos dentro dele. Isto é, você nunca pode seguir sozinho, deve escolher levar os outros ... este é o paradoxo final do labirinto, a engenhosidade quintessencial de sua construção, que a única saída é um caminho de retorno voluntário (para interior de seu poder), que é o que constitui o caminho do bodhisattva."

Dick reforça essa mesma ideia: "Se a felicidade existe, ela deve surgir da entrega voluntária de alguém em troca da participação consciente no destino da unidade total". Em outras palavras, o herói da Matrix, o bodhisattva, o hacker, é aquele que descobre que a realidade além da ilusão do programa de simulação é uma completa interdependência entre todos os seres, que é a semente indestrutível da compaixão. A motivação da compaixão, renúncia e entrega em favor dos outros é a sabedoria que os outros fazem parte de mim; Se o universo inteiro é a experiência de um único corpo ou mandala, então a compaixão surge tão espontaneamente quanto quando se remove os dedos do fogo (aquele fogo é samsara, é a Matrix). No budismo tântrico, a compaixão constitui o método insuperável (upaya) para alcançar a iluminação e o despertar do sonho do samsara.

Este interstício ou falha divina na arquitetura da Matrix ou do labirinto (este fio de Ariadne), que Dick descobre como compaixão, é precisamente o que une o budismo e o cristianismo. Também em The Exegesis, Dick escreve: "Cristo é um Buda quando considerado como um bodhisattva". O
ato de Cristo é um ato de pura compaixão: sacrificar sua vida para salvar os outros; Coincide com o juramento do bodhisattva: dedicar incontáveis vidas para libertar todos os seres, permanecer dentro do samsara até que todos os seres alcancem a liberação.

Após esta incursão gnóstica no Budismo Mahayana, Dick escreve que "a maior qualidade da compaixão é o único poder capaz de resolver o labirinto... A verdadeira medida do homem não é sua inteligência ou seu sucesso neste sistema insano. Não, a verdadeira medida do homem é esta: quão rápido ele pode responder às necessidades dos outros e quanto de si mesmo ele pode dar ". Aqui está um claro eco bíblico, somente aqueles que são capazes de dar suas vidas (esta vida mundana, este pó) podem obter a vida eterna, mas não será mais alguém, um indivíduo, mas será
a própria divindade: Cristo, Buda ...

A morte de nossa personalidade separada, de nosso ego, é a semente da vida do espírito. Mas essa vida do espírito, em vez de uma nova fase, é a condição original que sempre existiu, inata e, portanto, imortal. Com isso, chegamos também a outro dos conceitos essenciais da teologia de Philip K. Dick, o escritor de ficção científica que na verdade foi um dos grandes místicos do século XX. Partindo de Platão, mas também em comunhão com o caminho tântrico do budismo vajrayana , Dick sustenta que o remédio para curar essa condição de estar perdido no labirinto (no samsara) é a anamnese, a perda da amnésia que nos caracteriza. "Você se lembrou de suas origens e elas estavam além das estrelas." No budismo tântrico a condição original, a noção de pureza primordial, a natureza búdica inerente (ou tathagatagarbha), é assumida como a presente realidade, assim a base do caminho torna-se indivisível do fruto (o projeto de se tornar Buda é nutrido por uma visão de que já somos budas). Em outras palavras, a pessoa se lembra, a pessoa se recorda (mindfulness, sati) da própria natureza búdica, a luz da origem (além das estrelas e além do humano).

Do mesmo modo, o fato da saída do labirinto constituir-se precisamente isto, da perspectiva da compaixão, já intui uma noção que não está plenamente desenvolvida na visão de Dick (e que talvez entre em conflito com o dualismo do gnosticismo cristão), isto é, a não-dualidade. No sentido mais profundo, quando a mudança de perspectiva da compaixão e a integração da totalidade em uma só foram feitas, o labirinto não é mais um labirinto (é um espaço sem limites), não há separação entre o exterior e o interior, o samsara é o nirvana, mas, nos dizem as tradições místicas, isto só é compreendido e experimentado por alguém que alcançou um estado como o de um cristo, um bodhisattva, um tzadikim, etc.

No filme The Matrix: Revolutions , o clímax da saga ocorre com um confronto entre o agente Smith e Neo. Neo consegue conquistar o último obstáculo, reconhecendo assim plenamente sua própria natureza búdica como "O Único", tornando-se um com de seu inimigo, absorvendo-o em si mesmo a Smith. Quando isso é alcançado, a Matrix explode no vazio que sempre foi, apenas brilho vazio. Para o Budismo Mahayana, o vazio necessariamente implica compaixão e vice-versa (essa extensão de Neo em Smith é um reconhecimento do vazio da identidade e, ao mesmo tempo, uma compaixão, um sentimento). As coisas estão vazias porque não têm existência inerente, elas não existem por si próprias, mas apenas na interdependência com todas as outras coisas; A compaixão surge espontaneamente de reconhecer essa interdependência, poderíamos até dizer que a compaixão é a mesma interdependência: o ato reflexo que surge espontaneamente de saber que em cada coisa todas as outras são refletidas (como no caso do mítico colar de pérolas de
Indra, uma das mais belas metáforas da natureza do universo).

Dick diz: "Nós somos cosmocratas esquecidos, presos no universo de nossa própria criação". É a ignorância que este mundo é gerado pela nossa própria mente que perpetua o estado de sofrimento, que continua a reproduzir um sonho. Sofremos e sentimos dor porque acreditamos que o sonho é real e que estamos separados dos outros, mas esse mesmo sofrimento é o que nos motiva a agir, descobrir a verdade e despertar. "Em um sentido muito real, a dor que sentimos como criaturas vivas é a dor do despertar ... a pressão dessa dor nos motiva a buscar respostas ou, o que é o mesmo, nos motiva para uma maior consciência". Este é exatamente o entendimento da primeira nobre verdade do Buda.

Nota do Tradutor: O texto foi adaptado e revisado a partir da versão preliminar fornecida pelo Google Tradutor (translate.google.com.br).

Fonte na Web

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Por L.C. Dias “Se você assume que não existe esperança, então você garante que não haverá esperança. Se você assume que existe um instinto em direção à liberdade, então existem oportunidades de mudar as coisas.” Noam Chomsky "No âmbito do interpessoal, no domínio de como você e eu nos relacionamos como seres sociais, não existem áreas mais importantes do que a espiritualidade e a política." Ken Wilber "A política é o único poder disponível para aqueles que não têm poder." Daniel Innerarity "Sejas tu a transformação que queres ver no mundo." Mahatma Gandhi Metanoia é um termo transliterado do grego antigo que no contexto do cristianismo primitivo significava mudança da mente ou transformação interior, ou seja, um processo de mudança na maneira de pensar e dos estados mentais inábeis, visando atingir um novo nível de consciência e, consequentemente, uma nova forma de viver no mundo. Portanto, metanoia é um movimento pessoa

Os cegos, o elefante e a visão integral de Ken Wilber

Por L.C. Dias "Eu sigo uma grande regra: todo mundo está certo. Mais especificamente, todo mundo – inclusive eu – possui alguns importantes pedaços da verdade, e todos precisam ser honrados, valorizados e incluídos em um abraço gracioso, espaçoso e compassivo." Ken Wilber   Quando me deparo com as acaloradas disputas ideológicas - sejam políticas ou religiosas - sempre recordo da famosa parábola hindu dos cegos e do elefante que retrata tão bem a ilusão daqueles que reivindicam a exclusividade da sua verdade. Das várias versões existentes da parábola - tanto antigas quanto modernas - gosto desta versão resumida: "Sete sábios discutiam qual deles conhecia, realmente, a verdade. O rei, igualmente sábio, aproximou-se e indagou o motivo da discussão:  – Estamos tentando descobrir qual de nós é dono da verdade. Ao escutar isso, o rei pediu a um de seus servos que levasse sete cegos e um elefante até o seu palácio. Quando chegaram o rei mandou chamar o