Por Ken Wilber
“Então maravilha e remorso serão estranhos a você, você e os outros ser-lhe-ão estranhos, fora e dentro não terão o menor sentido. E num óbvio choque de reconhecimento – onde meu Mestre é meu Self, o Self é o Kosmos e o Kosmos é minha Alma – você andará muito suavemente na bruma deste mundo e o transformará inteiramente não fazendo absolutamente nada”
Ken Wilber
O texto apresentado a seguir é um excerto do artigo de Wilber intitulado “Uma espiritualidade que transforma”. Apesar de não ter sido publicado com a intenção de se tornar um “manifesto”, o trecho selecionado do artigo original tem a força persuasiva e revolucionária de um chamado à ação pessoal e coletiva, um grito de alerta capaz de motivar as consciências que já despertaram para a gravidade do momento atual em direção à mobilização, com vistas a impulsionarem o surgimento de uma nova realidade global.
Em virtude da importância do tema para uma possível e necessária metanoia pessoal e planetária, recomendo incisivamente a leitura completa do artigo, pois aborda a espiritualidade sob a ótica do pensamento integral de Wilber. Além disso, tem a tradução de Ari Raynsford, um dos mais competentes intérpretes e divulgadores do pensamento wilberiano no Brasil.
L.C. Dias
Um grito transformador - Ken Wilber
Toda excelência é elitista. E isto inclui também a excelência espiritual. Mas a excelência espiritual é um elitismo para o qual todos estão convidados. Vamos primeiro aos grandes mestres – Padmasambhava, Santa Teresa de Ávila, Buda Gautama, Lady Tsogyal, Emerson, Eckhart, Maimônides, Shankara, Sri Ramana Maharshi, Bodhidarma, Garab Dorje. Sua mensagem é sempre a mesma: que esta consciência que está em mim esteja em você. Você sempre começa elitista; você sempre termina igualitário.
Mas, em algum ponto do caminho, há a furiosa sabedoria que grita do fundo do coração: devemos, todos nós, prestar atenção ao radical e supremo objetivo transformador. Assim, qualquer tipo de espiritualidade autêntica ou integral também envolverá sempre um grito crítico, intenso e ocasionalmente polêmico do campo transformador para o campo meramente interpretativo.
Se usarmos as percentagens do Ch’an chinês como exemplo genérico, isto significa que se 0,000001 da população está realmente envolvida em espiritualidade autêntica ou genuína, então, 0,999999 da população está envolvida em sistemas de crenças horizontais não-transformadores, inautênticos, meramente interpretativos. E isto significa, sim, que a grande maioria dos “buscadores espirituais” deste país [5] (como de qualquer outro) está envolvida em algo muito menor que acontecimentos autênticos. Sempre foi assim e ainda o é hoje. Este país não é exceção.
Mas na América atual isto é muito mais preocupante, porque a grande maioria dos adeptos da espiritualidade horizontal freqüentemente afirma estar representando a vanguarda da transformação espiritual, o “novo paradigma” que transformará o mundo, a “grande transformação” da qual são os líderes. E, na maioria das vezes, eles absolutamente não são profundos transformadores; são meros, mas agressivos, interpretativos – não oferecem meios efetivos para desmontar completamente o self, mas simples caminhos para que o self pense de maneira diferente. Não modos de transformação, mas simplesmente novos modos de interpretação. Em realidade, o que a maioria oferece não é uma prática ou uma série de práticas; não é sadhana, ou satsang, ou shikan-taza, ou ioga. O que a maioria oferece é simplesmente a sugestão: leia meu livro sobre o novo paradigma. Isto é profundamente perturbador e profundamente preocupante.
Os buscadores espirituais autênticos dedicam-se de corpo e alma às grandes tradições transformadoras; mesmo assim, deverão sempre fazer duas coisas ao mesmo tempo: analisar e engajar-se em práticas interpretativas e menores (das quais, normalmente, depende seu sucesso), mas também dar um tonitruante grito do coração de que somente a interpretação não é suficiente.
Assim, todos aqueles que tiveram suas almas sacudidas pela transformação autêntica, acredito, devem lutar com a profunda obrigação moral e gritar do fundo do coração – talvez mansa e gentilmente, com lágrimas de relutância; talvez com agressiva paixão e furiosa sabedoria; talvez com lenta e cuidadosa análise; talvez com inquebrantável exemplo público – pois a autenticidade sempre, e absolutamente, carrega uma exigência e um dever: você deve falar claramente, com o melhor do seu talento, sacudir a árvore espiritual e jogar seus faróis nos olhos dos complacentes. Você deve deixar o entendimento radical vibrar em suas veias e sacudir os que estão a sua volta.
Ah! Se você não age, está traindo sua própria autenticidade. Está escondendo seu verdadeiro tesouro. Você não quer aborrecer os outros porque não quer aborrecer-se. Você está agindo de má-fé, o sabor de um infinito ruim.
Porque, entenda, o fato alarmante é que qualquer entendimento profundo carrega uma terrível responsabilidade: aqueles a quem é permitido ver, simultaneamente estão encilhados no dever de comunicar a visão em termos bem claros; esta é a troca. Foi-lhe permitido ver a verdade com a condição que você a comunicaria a outros (este é o sentido último do voto do bodhisattva [6] ). E, portanto, se você viu, deve falar. Fale com compaixão, fale com furiosa sabedoria, ou fale habilmente, mas fale.
E esta é, verdadeiramente, uma carga terrível, uma carga horrível, porque em nenhuma situação há lugar para timidez. O fato de que você possa estar errado não é desculpa; você pode estar certo em sua comunicação, ou pode estar errado, mas isto não importa. O que importa, como nos lembrou secamente Kierkegaard, é que somente investindo e relatando sua visão com paixão, a verdade pode penetrar, de uma maneira ou de outra, na relutância do mundo. Se você está certo ou errado, somente sua paixão forçará a descoberta. É seu dever promover esta descoberta e, portanto, é seu dever disseminar sua verdade com toda paixão e coragem que puder encontrar em seu coração. Você deve gritar como puder.
O mundo comum já está gritando, e com tal ira roufenha que as verdadeiras vozes mal podem ser ouvidas. O mundo materialista já está cheio de publicidade e fascinação, gritos de atração e brados de comércio, acenos de saudação e convites para achegar-se. Não quero ser duro aqui pois devemos honrar nossos engajamentos menores. Entretanto, você deve ter notado que a palavra “alma” é agora o item mais quente nos títulos de livros à venda, mas na maioria desses livros “alma” realmente significa ego arrastado. “Alma” vem denotando, neste frenesi alimentador de entendimento interpretativo, não o atemporal em você mas sim aquilo que se agita mais intensamente ao longo do tempo, e, assim, “cuidado com a alma” significa, incompreensivelmente, focar-se intensamente em seu ardente self alienado. Do mesmo modo, “espiritual” está na boca de todo mundo, mas normalmente o que realmente significa é qualquer intenso sentimento egóico, assim como “coração” passou a significar qualquer sentimento sincero do self.
Em verdade, tudo isso é simplesmente o mesmo antigo jogo interpretativo, de roupa nova, indo à cidade. E, mesmo assim, poderia ser aceitável se não fosse pelo fato alarmante de que esta manobra interpretativa é agressivamente denominada “transformação”, quando, obviamente, nada mais é que uma nova série de ariscas interpretações. Em outras palavras, infelizmente parece estar ocorrendo uma profunda hipocrisia oculta no jogo que considera qualquer nova interpretação como sendo uma grande transformação. E o mundo em geral, Leste ou Oeste, Norte ou Sul, está, como sempre esteve, na maioria das vezes, completamente surdo a esta calamidade.
Assim, em função da medida de sua realização autêntica, você está realmente pensando em sussurrar gentilmente no ouvido deste mundo quase surdo? Não, meu amigo, você tem que gritar. Gritar do fundo do coração o que você viu, gritar o mais que puder.
Mas não indiscriminadamente. Prossigamos cuidadosamente com o grito transformador. Que pequenos grupos de espiritualidade transformadora radical foquem seus esforços e transformem seus estudantes. E que esses grupos lentamente, cuidadosamente, responsavelmente, humildemente comecem a irradiar sua influência, adotando uma tolerância absoluta com todas as visões, mas tentando, todavia, defender uma espiritualidade verdadeira, autêntica e integral – pelo exemplo, por irradiação, por divulgação óbvia, por libertação inequívoca. Que esses grupos de transformação gentilmente convençam o mundo e seus relutantes egos, desafiem sua legitimidade, desafiem suas interpretações limitadoras e ofereçam um despertar que se contraponha ao entorpecimento que assombra o mundo em geral.
Comecemos aqui e agora – você e eu – o nosso compromisso de respirar ao infinito até que apenas o infinito seja o único estado que o mundo reconhecerá. Deixemos que a realização radical brilhe em nossas faces, ruja em nossos corações e troveje em nossos cérebros – o simples fato, o fato óbvio: você, no imediatismo da sua consciência presente, é, na realidade, o mundo inteiro, em toda sua paixão e sua indiferença, em toda sua glória e sua graça, em todas suas vitórias e suas lágrimas. Você não vê o sol, você é o sol; você não ouve a chuva, você é a chuva; você não sente a terra, você é a terra. E nesta simples, clara, inequívoca consideração, a interpretação cessará em todos os domínios, você transformar-se-á no próprio Coração do Kosmos [7] e aí, exatamente aí, muito simplesmente, muito tranqüilamente, tudo será desfeito. Então, maravilha e remorso serão estranhos a você, você e os outros ser-lhe-ão estranhos, fora e dentro não terão o menor sentido. E num óbvio choque de reconhecimento – onde meu Mestre é meu Self [8], o Self é o Kosmos e o Kosmos é minha Alma – você andará muito suavemente na bruma deste mundo e o transformará inteiramente não fazendo absolutamente nada.
E então, e então, e somente então, você – finalmente, claramente, cuidadosamente e com compaixão – escreverá na lápide de um self que nunca existiu: Há somente Ati.
Notas:
[5] Wilber refere-se aos Estados Unidos. (N.T.)
[6] Do sânscrito bodhi (iluminação) e sattva (ser). No Budismo Mahayana, o bodhisattva, um ser que, por compaixão, evita atingir o Nirvana a fim de salvar outras pessoas, é adorado como uma divindade, (N. T.)
[7] Wilber reapresenta esta palavra em seu livro Sex, Ecology, Spirituality com a seguinte observação: “Os Pitagóricos introduziram a palavra Kosmos que, normalmente, traduzimos como ‘cosmos’. Mas o significado original de Kosmos era a natureza de padrões ou de processos de todos os domínios da existência, da matéria para a matemática para o divino, e não simplesmente o universo físico, que é o significado usual das palavras ‘cosmos’ e ‘universo’ hoje... O Kosmos contém o cosmos (ou fisiosfera), bio (ou biosfera), noo (ou noosfera) e teo (teosfera ou domínio divino) ” (N. T.)
[8] Wilber usa self (com “s” minúsculo) para aquilo que o filósofo Huberto Rohden denomina “ego humano” e Self (com “S” maiúsculo) para o que Rohden chama o “Eu Divino”. (N. T.)
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