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O desafio do nosso tempo: Integrar a ciência e a religião

Por Ken Wilber

Não há, no mundo moderno, nenhum tópico mais importante e atual do que a relação entre ciência e religião. A ciência é, indubitavelmente, um dos métodos mais profundos encontrados pelo homem para descobrir a verdade; ao passo que a religião ainda é a maior força produtora de significação. Verdade e sentido, ciência e religião: ainda não sabemos como juntá-los de maneira aceitável para ambos.

Reconciliar ciência e religião não é simplesmente uma curiosidade acadêmica passageira. Estas duas enormes forças, ou seja: verdade e significado, estão em guerra no mundo de hoje. A ciência moderna e a religião pré-moderna habitam agressiva­mente o mesmo planeta, cada qual competindo, à sua maneira, pelo domínio do mundo. Mais cedo ou mais tarde, uma delas terá de ceder.

A ciência e a tecnologia criaram uma estrutura global e multinacional de sistemas industriais, econômicos, médicos, científicos e de informação. Por mais bené­ficos que sejam esses sistemas, todos eles, em si, estão desprovidos de significado e de valor. Como seus próprios propositores lembram constantemente, a ciência nos diz o que é e não o que deveria ser. A ciência nos fala de átomos, moléculas, galáxias, dados digitais e sistemas de redes: ela nos diz o que alguma coisa é, mas não nos conta se ela é boa ou ruim, ou como ela poderia ou deveria ser. Assim, essa imensa infra-estrutura científica global é, em si mesma, um esqueleto sem valores, por mais funcionalmente eficaz que possa ser.

A religião entrou alegremente nesse colossal vácuo de valores. A ciência criou essa extraordinária estrutura mundial e global intrinsecamente destituída de valo­res. Mas, dentro dessa ubíqua moldura, bolsões subglobais de religiões pré-moder­nas têm criado valores e significado para bilhões de criaturas em todas as partes do mundo. E essas mesmas religiões pré-modernas muitas vezes negam validade à es­trutura científica na qual elas vivem e que lhes proporciona a maior parte da medi­cina, da economia, das finanças, das redes de informações, dos transportes e das comunicações. O significado religioso tenta florescer dentro do esqueleto científi­co da verdade, muitas vezes negando a própria estrutura científica, o que equivale a serrar o galho no qual se está sentado.

A repulsa é mútua, pois a ciência moderna jubilosamente nega na prática todos os princípios básicos da religião em geral. De acordo com o típico ponto de vista da ciência moderna, a religião não passa de um remanescente da infância da humanida­de, com a mesma realidade do Papai Noel, por exemplo. Quer as asserções religiosas sejam mais literais (Moisés abriu as águas do mar Vermelho), ou mais místicas (a religião envolve experiência espiritual direta), a ciência moderna nega todas elas, simplesmente porque não existem evidências empíricas confiáveis para nenhuma.

Assim é a bizarra estrutura do mundo de hoje: uma estrutura científica, que é global em seu alcance e onipresente por suas redes de informação e comunicação e que forma um esqueleto sem sentido, dentro do qual centenas de religiões subglobais e pré-modernas criam valores e significado para bilhões de pessoas. Mas ambas, ciência e religião, negam significado e até mesmo realidade, uma à outra. Isso cons­titui um cisma violento e uma ruptura nos órgãos internos da cultura global con­temporânea e é exatamente por isso que muitos analistas sociais acreditam que, se não surgir algum tipo de reconciliação entre elas, o futuro da humanidade será, na melhor das hipóteses, precário.

O Que Entendemos por “Religião”?

O objetivo deste livro é sugerir como começar a pensar, tanto na ciência como na religião, de maneira a possibilitar que elas se reconciliem e até mesmo se integrem, de forma aceitável para ambas as partes.

É claro que reconciliar ciência com religião depende, em parte, do que consi­deramos “ciência” e “religião”. Dedicaremos os capítulos 11, 12 e 13 exclusivamen­te a esse tópico. Enquanto isso, temos de levar alguns pontos em consideração.

Definir “religião” já é uma tarefa quase impossível, principalmente porque exis­tem tantos tipos que é difícil identificar o que eles têm em comum, se é que o têm. Mas uma coisa é óbvia: muitos dos princípios específicos e centrais das grandes religiões do mundo se contradizem mutuamente, mas, se não conseguirmos encontrar uma essência comum a todas as grandes religiões da humanidade, jamais conseguiremos a integração entre ciência e religião.

Na verdade, se não encontrarmos uma essência comum, aceita em geral pela maioria das religiões, seremos forçados a escolher uma religião e negar a importân­cia das demais; ou então teríamos de procurar princípios comuns entre as diversas crenças e, assim, alienar as suas próprias tradições. Jamais chegaríamos a integrar ciência e religião de forma aceitável por ambas as partes, pois a maioria das reli­giões rejeitaria o que foi feito às suas crenças para forçar essa reconciliação.

Não seria bom, por exemplo, como fizeram muitos criacionistas cristãos, sus­tentar que o big-bang indica que o universo é produto de um Deus criador pessoal, quando o budismo, uma das religiões mais profundas e influentes, nem sequer acre­dita num deus pessoal. Assim, não podemos usar o big-bang para integrar ciência e religião, a menos que primeiro encontremos uma forma de reconciliar o cristianis­mo com o budismo, e com as sabedorias tradicionais em geral. De outra forma, não estaremos integrando a ciência com a religião; estaremos simplesmente integrando uma versão estreita do cristianismo com uma das versões da ciência. Isso não me­receria o termo integração e certamente não é uma integração aceitável pelas ou­tras religiões.

Portanto, aqueles que desejam defender uma forma de religião em particular — quer seja a de um deus patriarcal, a de uma grande deusa matriarcal, a de um cristianismo fundamentalista, um xintoísmo mitológico, uma eco-religião gaia, um islamismo fundamentalista — tomam, muitas vezes, desenvolvimentos científicos modernos para tentar mostrar que tais desenvolvimentos, apenas por acaso, encai­xam-se numa generosa maneira de interpretar a sua religião em particular. Não será dessa maneira que trataremos do assunto. Pois o fato é que a reconciliação, longamente desejada, permanecerá mais sutil do que nunca, a menos que a ciência se mostre compatível com determinadas características comuns a todas as maiores tradições de sabedoria do mundo.

Assim, antes que possamos tentar integrar ciência e religião, temos de verificar se existe um fundamento comum entre as grandes tradições de sabedoria da huma­nidade. Essa essência comum teria de ser uma estrutura geral que, despojada de pormenores específicos e de conteúdos concretos, ainda fosse aceitável para a maioria das tradições religiosas, pelo menos abstratamente. Existe essa essência comum?

A resposta, aparentemente, é afirmativa.

A Grande Cadeia do Ser

Huston Smith, considerado uma das maiores autoridades em religião comparada, apontou, em seu maravilhoso livro Forgotten Truth, que praticamente todas as gran­des tradições de sabedoria concordam na crença da Grande Cadeia do Ser. Smith não está sozinho nessa convicção. De Ananda Coomaraswamy a René Guénon, de Fritjof Schuon a Nicholas Berdyaev, de Michael Murphy a Roger Walsh, de Seyyed Nasr a Lex Hixon, a conclusão é a mesma: a essência da visão de mundo religiosa pré-moderna é a Grande Cadeia do Ser.

De acordo com essa visão quase universal, a realidade é uma rica tapeçaria de níveis entrelaçados, abrangendo desde a matéria até o corpo, até a mente, até a alma, até o espírito. Cada um dos níveis mais elevados “envolve” ou “abarca” dimen­sões menores como se fosse uma série de ninhos, dentro de ninhos, dentro de ni­nhos do Ser. Isso ocorre de tal maneira que cada coisa ou acontecimento no mundo esteja entrelaçado com cada um dos outros e todos estejam finalmente envolvidos pelo Espírito, por Deus, pela Deusa, pelo Tao, por Brahma, ou pelo próprio Absoluto.

Como Arthur Lovejoy demonstrou abundantemente em seu clássico tratado sobre a Grande Cadeia, essa visão da realidade tem sido de fato “a filosofia oficial dominante da maioria da humanidade civilizada ao longo da maior parte de sua história”. A Grande Cadeia do Ser é a visão de mundo “adotada pela maioria das mentes especulativas mais sutis e pelos grandes mestres religiosos, tanto do Orien­te quanto do Ocidente”. Essa espantosa unanimidade de crenças religiosas profundas (FIGURA 1-1 — O GRANDE NINHO DO SER) levou Alan Watts a declarar categoricamente que: “Pouco percebemos a extre­ma peculiaridade da nossa própria posição e acreditamos ser difícil entender um fato simples que é um consenso filosófico de alcance universal, mantido pelas pes­soas que relatam as mesmas visões e ensinam a mesma doutrina essencial, quer vivam hoje ou tenham vivido há seis mil anos, quer seja no Novo México, no extre­mo Ocidente ou no Japão, no extremo Oriente,”

A Grande Cadeia do Ser — cuja denominação talvez não seja adequada, pois, como afirmei, a visão atual assemelha-se mais a um Grande Ninho do Ser, em que cada uma das dimensões maiores abarca ou envolve as menores — é uma situação muitas vezes descrita como de “transcendência e inclusão”. O espírito transcende mas inclui a alma, a qual transcende mas inclui a mente, a qual transcende mas inclui o corpo vital, o qual, por sua vez, transcende mas inclui a matéria. Eis por que o Grande Ninho é mais adequadamente mostrado como uma série de esferas ou círculos concêntricos, como indicado na figura 1-1.

Isso não quer dizer que cada uma das tradições religiosas de tempos imemoriais tenha possuído exatamente esse esquema particular de matéria, corpo, mente, alma e espírito; houve consideráveis variações dentro dele. Algumas tradições possuíam apenas três níveis básicos no Grande Ninho, em geral corpo, mente e espírito. Como Chõgyam Trungpa Rimpoche afirmou em Shambhala: The Sacred Path ofthe Warrior, essa hierarquia simples de corpo, mente e espírito foi, não obstante, a espinha dorsal até mesmo das primeiras tradições xamânicas, apresentada como hierarquia de ter­ra, homem e céu. Esse esquema de três níveis reaparece nas noções hinduístas e budistas dos três grandes estados do ser: grosseiro (matéria e corpo), sutil (mente e alma) e causal (espírito). Por outro lado, muitas dessas tradições têm também ex­tensas subdivisões do Grande Ninho, algumas vezes fragmentando-se em até cin­co, sete, doze ou mais níveis e subníveis.

Mas o ponto básico permanece essencialmente o mesmo: a realidade é uma série de ninhos, dentro de ninhos, dentro de ninhos, abrangendo desde a matéria até o Espírito, com o resultado de que todos os seres e todos os níveis são, finalmen­te, envoltos no abraço penetrante e amoroso de um Espírito sempre presente.

Cada um dos níveis mais elevados do Grande Ninho, embora contenha os seus menores, possui qualidades emergentes não encontradas no nível secundário. Des­sa forma, o corpo vital animal contém a matéria em sua composição, mas também acrescenta sensações, sentimentos e emoções, que não são encontrados nas pedras. Enquanto a mente humana contém emoções corporais em sua composição, também acrescenta faculdades cognitivas mais elevadas, como razão e lógica, que não são encontradas nas plantas ou em outros animais. E, enquanto a alma contém a mente em sua composição, ela também acrescenta cognições e afetos, como iluminação e visão arquetípicas, não encontradas na mente racional. E assim por diante.

Em suma, cada nível mais elevado possui as feições características de seus ní­veis inferiores, mas acrescenta elementos não encontrados nesses níveis. Ou seja, cada nível mais elevado transcende mas contém os seus inferiores. E isso significa que cada nível de realidade possui uma arquitetura diferente, por assim dizer.

Apenas por essa razão, cada nível de realidade, conforme as grandes tradições, associa-se a um ramo específico de conhecimento, indicados na figura 1-1: a física estuda a matéria; a biologia estuda os corpos vivos; a psicologia e a filosofia tratam da mente; a teologia estuda a alma e suas relações com Deus, e o misticismo estuda o Ente Supremo ou Vazio puro, a experiência radical do Espírito além de Deus e da alma.

Essa tem sido a visão de mundo predominante na maioria da história ou pré-história humanas, em uma variante ou outra. Ela é a espinha dorsal da “filosofia perene”, o consenso quase universal sobre o real sustentada pela humanidade na maior parte de sua existência sobre a Terra. Isto é, até o surgimento da modernidade no Ocidente.

A Moderna Negação da Espiritualidade

Com o surgimento da modernidade no Ocidente, a Grande Cadeia do Ser desapa­receu quase por completo. Como veremos, o Ocidente moderno, depois do Iluminismo, tornou-se a primeira grande civilização na história da humanidade a negar quase que totalmente a existência do Grande Ninho do Ser.

Em seu lugar apareceu uma concepção “plana” de um universo composto basi­camente de matéria (ou matéria/energia), e esse universo material, que inclui cor­pos e mentes materiais, podia ser melhor estudado pela ciência, e apenas pela ciên­cia. Assim, no lugar da Grande Cadeia que abrangia desde a matéria até Deus, havia a matéria e ponto final. E foi assim que a visão de mundo conhecida como materialismo científico tornou-se, no todo ou em parte, a filosofia oficial dominante do Ocidente moderno.

Muitos estudiosos de mentalidade religiosa notaram esse moderno “colapso” do Grande Ninho do Espírito e lamentam-no profundamente. Segundo eles, esse colapso deve ser atribuído a qualquer coisa, desde o paradigma newtoniano-­cartesiano até a dominação patriarcal desde a mercantilização capitalista dos va­lores até a agressão masculina contra a Deusa; desde o ódio à rede holística da vida e a desvalorização da natureza em favor das abstrações analíticas; desde a cobiça e luxúria materiais até a obsessão pelo ganho monetário. A lista das causas malévolas é praticamente infinita.

Por mais verdadeiras que possam ser essas explicações, nenhuma delas focaliza os problemas fundamentais. Como veremos, existem boas razões para que afirme­mos que a Grande Cadeia, em sua forma tradicional, tenha desmoronado. O Gran­de Ninho do Espírito simplesmente não conseguiu resistir a algumas verdades ine­gáveis trazidas pela modernidade. Se quisermos integrar a religião pré-moderna com a ciência moderna, a verdade inerente a ambas as partes deve ser levada a essa união. A modernidade possui um grande quinhão de novas verdades e novas des­cobertas. Ela está longe de ser o Grande Satã.

Ao mesmo tempo, a ascensão da modernidade foi marcada por seus próprios problemas graves, entre os quais o grande terremoto cultural provocado pelo co­lapso do Grande Ninho do Espírito. O ser humano não estava mais envolvido pelo Espírito, estava submerso na matéria: um universo pouco estimulante.

E assim chegamos a um ponto crucial. Nosso objetivo é integrar a religião pré-moderna com a ciência moderna. Já vimos que a essência da religião pré-moderna é o Grande Ninho do Ser. Mas qual será precisamente a essência da modernidade? Se estamos a ponto de integrar o pré-moderno com o moderno, e o pré-moderno é a Grande Cadeia, então o que significa o “moderno”? A chave para essa integração, há tanto tempo desejada, talvez esteja nessa direção negligenciada.

O Que é a “Modernidade”?

O que especificamente a modernidade legou ao mundo que as culturas pré-mo­dernas nunca tiveram? O que tornou a modernidade tão substancialmente diferen­te das culturas e épocas que a precederam? O que quer que tenha sido deve ser algo essencial para essa integração tão desejada.

Há muitas respostas para a pergunta: “O que é a modernidade?” A maioria delas é decididamente de caráter negativo. Diz-se que a modernidade marcou a morte de Deus, a morte da Deusa, a mercantilização da vida, o nivelamento das distinções qualitativas, as brutalidades do capitalismo, a substituição da qualidade pela quantidade, a perda dos valores e do sentido, a fragmentação da vida mundial, o terror existencial, um materialismo vulgar e desenfreado; tudo isso resumido na famosa frase de Max Weber: “desencanto do mundo.”

Sem dúvida, há muito de verdade em todas essas alegações, e trataremos delas em pormenores. Mas certamente a modernidade tem aspectos muito positivos tam­bém, pois nos trouxe as democracias liberais; os ideais de igualdade, a liberdade e a justiça, independentemente de raça, credo ou gênero; a medicina, a física, a biolo­gia e a química modernas; o fim da escravidão; o surgimento do feminismo; os direitos universais da humanidade. Tudo isso, certamente, é mais nobre do que um mero “desencanto do mundo”.

Não. O que precisamos é de uma definição ou descrição específica de modernidade que leve em conta todos esses fatores, bons (como as democracias liberais) e ruins (como por exemplo a disseminada perda de significado). Alguns estudiosos, de Max Weber a Jürgen Habermas, afirmam que o que define especifi­camente a modernidade é algo chamado “distinção das esferas de valores cultu­rais”- que significa a distinção da arte, da moral e da ciência. Enquanto essas esferas anteriormente tendiam a se fundir, a modernidade as diferenciou e deixou que cada uma seguisse seu próprio caminho, com sua própria dignidade, usando seus próprios instrumentos e seguindo suas próprias descobertas, livres de intrusões por parte das outras esferas.

Essa diferenciação permitiu que cada esfera fizesse descobertas profundas, as quais, se usadas sabiamente, poderiam levar a resultados “bons”, como a democra­cia, o fim da escravidão, o surgimento do feminismo e os rápidos avanços na medi­cina. Mas, se usadas sem critério, poderiam facilmente ser desvirtuadas e cair no “lado negro” da modernidade, como o imperialismo científico, o desencanto do mundo e os esquemas totalizantes de dominação mundial.

O brilhantismo dessa definição de modernidade, ou seja, que ela diferencia as esferas de valor da arte, da moral e da ciência, é que ela nos permite ver o que há por baixo tanto das boas novas quanto das ruins da modernidade. Essa definição, que ficará mais clara no decorrer dos próximos capítulos, leva-nos a compreender a nobreza e os desastres da modernidade, os quais analisaremos cuidadosamente.

As culturas pré-modernas certamente possuíam arte, moral e ciência. O pro­blema é que essas esferas eram relativamente “indiferenciadas”. Para dar apenas um exemplo, durante a Idade Média, Galileu não podia olhar livremente através do seu telescópio e relatar os resultados porque a arte, a moral e a ciência se fun­diam na Igreja e, portanto, era a moral da Igreja que definia o que a ciência podia ou não podia fazer. A Bíblia dizia (ou insinuava) que o Sol girava em torno da Terra e ponto final.

Mas, com a diferenciação das esferas de valor, alguém como Galileu poderia olhar pelo seu telescópio sem medo de ser acusado de heresia e traição. A ciência tinha liberdade de procurar a própria verdade, livre da dominação brutal de outras esferas. O mesmo se daria com a arte e a moral: os artistas poderiam, sem medo de punição, pintar temas que não fossem religiosos ou até mesmo sacrílegos, caso desejassem. E a teoria moral estaria livre para buscar uma vida boa, de acordo com a Bíblia ou não.

Por todos esses motivos, e mais alguns, essas diferenciações de modernidade tam­bém eram conhecidas como a nobreza da modernidade, pois foram responsáveis, em parte, pelo surgimento da democracia liberal, pelo fim da escravidão e pelos desconcertantes avanços nas ciências médicas, para citar apenas algumas delas.

Como veremos, as ‘más notícias” da modernidade consistiam em que essas esferas de valores não se separavam amigavelmente, mas em geral rompiam rela­ções por completo. As maravilhosas diferenciações da modernidade se transforma­vam em dissociação, fragmentação, alienação. A nobreza se tornou um desastre. O crescimento virou um câncer. A medida que as esferas de valores começavam a se dissociar, permitiam que uma ciência poderosa e agressiva começasse a invadir e a dominar as outras esferas e a impedir que a arte e a moral fossem levadas em conta pela “realidade” que se aproximava. A ciência se transformou em cientificismo —materialismo científico e imperialismo científico — que logo se tornaria a visão de mundo dominante e “oficial” da modernidade.

Foi esse materialismo científico que proclamou a desvalorização das outras es­feras de valores, tornando-as “não-científicas”, ilusórias ou coisa pior. E por essa mesma razão, foi o materialismo científico que declarou a inexistência da Grande Cadeia do Ser.

De acordo com o materialismo científico, o Grande Ninho de matéria, corpo, mente, alma e espírito, podia ser reduzido a sistemas de matéria apenas; e a maté­ria, quer no cérebro material, quer nos sistemas materiais de processos, responderia por toda a realidade, sem outro remanescente. Mente, alma e Espírito desaparece­ram, como na verdade desapareceu toda a Grande Cadeia, com exceção de seu lamentável degrau inferior. Em seu lugar, como tão bem lamentou Whitehead, per­maneceu a realidade como “algo enfadonho, sem som, sem cheiro, sem cor, apenas a precipitação do material, incessantemente e sem sentido”.

E foi assim que o moderno Ocidente tornou-se a primeira grande civilização, em toda a história da raça humana, a negar realidade substancial ao Grande Ninho do Ser. E nessa negação maciça e universal que tentaremos introduzir novamente a dimensão espiritual, mas em termos aceitáveis também para a ciência.

Conclusão

Integrar religião e ciência é integrar uma visão de mundo pré-moderna a outra moderna. Mas vimos que a essência da pré-modernidade é a Grande Cadeia do Ser, e a essência da modernidade é a diferenciação das esferas de valores da arte, da moral e da ciência. Assim, para integrar religião e ciência, temos de integrar a Grande Cadeia com as diferenciações da modernidade. Como veremos no próximo capítulo, isso significa que cada um dos níveis da tradicional Grande Cadeia preci­sa ser cuidadosamente diferenciado à luz da modernidade. Se conseguirmos fazer isso, estaremos satisfazendo a ambos: a reivindicação essencial da espiritualidade, ou seja, a Grande Cadeia; e a reivindicação essencial da modernidade, isto é, a diferenciação das esferas de valores.

Se essa integração for feita sem “trapaça”, vale dizer, sem que a religião ou a ciência sejam esticadas e deformadas a ponto de ficarem irreconhecíveis, será uma integração que poderá realmente ser aceita por ambas as partes. Uma síntese assim juntaria o melhor da sabedoria pré-moderna com o brilhante conhecimento mo­derno, unindo a verdade e o sentido, de uma maneira ainda não alcançada pela mente moderna.

FONTE: Excerto do Cap. I do livro “A União da Alma e dos Sentidos”, de Ken Wilber, publicado no Brasil pela Editora Cultrix, em 2001.

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