Por L.C. Dias
“Não há mudança possível sem passar pelo autoconhecimento individual. Séculos e séculos de mudanças sociais e políticas falharam porque negligenciaram a mudança das pessoas. Só podemos curar o tecido através das células, as pessoas”.
Claudio Naranjo
Nelson Mandela afirmava que “a educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Já o psiquiatra chileno Cláudio Naranjo, pioneiro da psicologia transpessoal e candidato ao Prêmio Nobel da Paz em 2015, vai mais além e complementa esta ideia com a seguinte máxima: “mudar a educação para mudar o mundo”. Aliás, este é o título do livro revolucionário de Naranjo que trata sobre uma proposta transformadora para o sistema educacional vigente na maior parte do mundo.
Na entrevista concedida ao jornalista Alberto Fraile Oliver com o título “A educação que possuímos rouba dos jovens a consciência, o tempo e a vida”, Naranjo fez o seguinte diagnóstico:
“Eu penso que a educação não está a serviço da evolução humana... Esta educação serve para adestrar as pessoas de geração em geração, a fim de continuarem sendo manipuladas como cordeiros pelos meios de comunicação. Este é um grande mal social, querer usar a educação como uma maneira de meter na cabeça das pessoas um meio de ver as coisas que convém ao sistema, uma burocracia. Nossa maior necessidade é uma educação para evoluir, para que as pessoas sejam o que elas poderiam ser.
A crise da educação não é uma crise, entre as muitas crises que temos, uma vez que a educação é o cerne do problema. O mundo está em uma profunda crise por não termos uma educação voltada para a consciência. Nossa educação está estruturada de uma forma que rouba as pessoas de sua consciência, seu tempo e sua vida.
O modelo de desenvolvimento econômico de hoje tem ofuscado o desenvolvimento da pessoa”.
No prefácio do livro “Mudar a educação para mudar o mundo”, citado acima, Nicole Diesbach apresenta os princípios que norteiam a proposta do autor para uma educação transformadora:
“Naranjo convida, nem mais nem menos, a uma revolução - não o tipo de revolução que conhecemos com sangue e sem resultado real – visando somente uma transferência de poder. Os novos revolucionários são chamados a conquistar um alto nível de consciência, um profundo conhecimento de si mesmos e, portanto, dos outros, um silêncio interior que permite a atenção, a escuta, a percepção da verdade, um trabalho contínuo para colapsar o ego e um despertar da consciência com o reconhecimento de seu ser espiritual.
A educação é para o desenvolvimento humano integral e não para formar seres dóceis, manipulados e automatizados, sem visão futura, capazes somente de manipular os outros, produzir, vender e contentar-se com a pseudodemocracia. O autor nos disse maravilhosamente que a educação promove ‘a livre realização de nossas potencialidades evolutivas e criativas’ e acrescenta sabiamente que esse tipo de educação é ‘urgente para nossa sobrevivência coletiva’.
Em vez de desenvolver atitudes de atenção, habilidade e carinho, em virtude da nossa neurose coletiva aguda inventamos a ‘educação controladora’, enfatiza o autor, para assim controlar a sociedade, e nós temos aprendido tanto que também controlamos no escritório, na escola; em casa ao nosso marido, esposa ou filhos, etc. Nos encontramos longe, então, da educação ao serviço da libertação de cada um. Naranjo chama de ‘contra-controle’ ao fato de educar para a liberdade e autonomia com a intenção de obter indivíduos autênticos, e não robôs ou conformistas que evitam problemas.
Por isso, por razões fundamentais, depois de haver dado seu tempo e experiência a psicólogos e terapeutas, Naranjo escolhe dedicar-se a educadores, metres, professores, que têm um contato privilegiado com a juventude. Nosso mundo do amanhã será a imagem e semelhança deles. A primeira responsabilidade de ser em plenitude descansa sobre os ombros de educadores, pais e professores.
Não podem transmitir mais do que eles têm ou são. Na medida da evolução da própria consciência, nada pode impedi-los de sua própria transformação através dos meios mais apropriados existentes hoje.
É aqui que Claudio Naranjo nos demonstra que não é apenas um intelectual separado da realidade, mas que está assentado na terra. Ele criou, em especial, um seminário de dez dias, ou seja, um conjunto de práticas e disciplinas, chamado SAT (Ser, em sânscrito), cujo nome revela tanto a finalidade quanto o seu propósito fundamental. É suficiente, segundo ele, este tempo a cada ano, repetido alguns anos mais com novos elementos, para uma real reeducação.
A primeira meta do SAT é o desmantelamento do ego, do falso eu ou da personalidade, construído desde a infância para defender-se ou proteger-se contra a anti-sabedoria dos progenitores. Depois de um profundo autoconhecimento, chave para uma mudança saudável, os próximos objetivos do SAT são a reeducação interpessoal e o cultivo espiritual, o qual ajuda, segundo o autor, a ‘mudar nosso foco do externo para o interno, do aparente para o sutil’.
Como o SAT pode servir aos professores? Naranjo expressa isso amplamente em seu livro: este seminário lhes permite ter uma maior capacidade de abordagem experiencial da verdade, uma compreensão da condição humana e a habilidade de gerenciar-se como pessoa frente a outros, ou seja, a capacidade de trabalhar na área fronteiriça entre o terapêutico e o didático. Esta é uma das propostas do autor para educadores interessados em adquirir uma maneira de conhecer melhor seus alunos, a si mesmos e aos seres humanos em geral. A nova educação une a pedagogia à terapia e a terapia à espiritualidade. Naranjo se refere ao SAT como uma exploração pedagógica da experiência do Ser.
Para Claudio Naranjo, vivemos uma crise universal, desde as finanças até a ecologia e a qualidade de vida. Considera que é uma crise devido à escassez de amor e sabedoria, que vem a nós por um descuido do desenvolvimento humano e que nos leva a um suicídio coletivo cego.
O remédio? É educativo, pedagógico e psicoterapêutico, com o objetivo de redescobrir nossa própria fonte: o amor, a sabedoria e o Ser, o divino, recuperando a capacidade de ‘presença’ ou de estar no ‘aqui e agora’. É acercar-se da Consciência Suprema através da própria consciência, isto é, através de uma vivência. É a educação vivencial do ser. Saber quem tu és. É chegar a ser, antes de chegar a um pensamento correto. É silenciar o pensamento: ‘Miramos com os olhos do ego ao invés de olhar com os olhos da sabedoria’, conclui o autor. É estar desperto ao presente, para ver o que está no fundo de si mesmo, de ver a essência ‘invisível’ da realidade que está no centro de tudo, a verdade suprema.
Diante da inércia psico-espiritual de nossas instituições, deixando para trás o ego, Claudio Naranjo propõe um trabalho em si mesmo para libertar o nosso ser essencial da prisão da nossa neurótica compulsividade condicionado, para liberar o nosso potencial interior, nosso espírito, que ele chama ‘flor na árvore da nossa vida’, juntamente com a descoberta da dimensão sagrada do simplesmente Ser’.
Necessitamos diferenciar entre a natureza essencial do ser humano e a nossa forma atual de ser, produto de nosso próprio condicionamento. Devemos compreender os ensinamentos dos mestres espirituais de diferentes culturas sobre o caminho que pode levar-nos através do mistério da vacuidade, ‘a divina raiz da consciência’, diz o autor”.
E finaliza o prefácio da obra da seguinte forma:
"Em suma, propõe uma educação realmente transformadora, como indicado pelo título deste livro, isto é, uma educação salvífica, holística e integradora, que leva em consideração tanto as partes do ser como sua unidade.
Este livro é o caminho do próprio autor, é uma síntese de um buscador incansável a serviço da humanidade, partindo da medicina do corpo, passando pela medicina da profundidade da mente e chegando à medicina supra-mental, a do espírito, sendo um médico da alma ou, melhor dizendo, um médico integral. Seu livro é revelador de sua própria evolução e de sua entrega à humanidade em todas as facetas do ser. Coroa a busca, a luta e a entrega aos seus discípulos e ao próprio mundo através do seu crescente número de leitores e participantes do SAT.
Estou otimista frente a esta mudança silencioso, mas efetiva, em nosso mundo, que já está se expandindo em todos os países, graças às viagens de Claudio Naranjo, apesar de que, todavia, fora das instituições públicas, porque se percebe a ânsia de muitos educadores e terapeutas, que em parte trabalham em instituições públicas, no esforço de transformação de uns quantos neste planeta, que experimentam o uso sábio tanto de técnicas antigas e como das novas técnicas centradas no desenvolvimento humano que proporcionam estes encontros dirigidos pelo autor.
No entanto, para alguns, a mudança é lenta em comparação com a rápida expansão da loucura destrutiva do não amor e da anti-sabedoria em nosso planeta. Quem ganhará? Davi ou Golias? Depende muito da paixão no coração, do compromisso efetivo, da dedicação incondicional e da vida transparente dos Davi, guiados por professores da estatura de Claudio Naranjo.
Se a nova física nos diz que ‘o ser humano é um holograma maravilhoso que contém tanto a si mesmo como a todos os demais’ (Culioli), então se pode concluir que, se alguns se atreverem a criar o caminho, cedo ou tarde todos começarão a empreendê-lo”.
Mas, será possível mudar a educação sem mudar o sistema? Será possível mudar o método de ensino antes do nascimento de uma sociedade pós-capitalista baseada em princípios que valorizem a vida. Pois, no sistema atual, a educação está subordinada ao poder econômico e sempre buscará atender, prioritariamente, os interesses daqueles que patrocinam o sistema vigente.
Neste sentido, alguns anos após a publicação da primeira edição do “Mudar a educação para mudar o mundo”, em 2004, Naranjo divulgaria “Um manifesto para a mudança global na educação”. Na conclusão do documento faria o seguinte apelo:
"Anos atrás, eu me sentia como um camponês que, depois de muito tempo cultivando sua terra, encontra um tesouro: uma planta cujo suco poderia matar o dragão que assola a região. De repente, vi-me tendo inventado o que fazia falta para uma transformação rápida e massiva da educação no Ocidente. Parecia-me óbvio que nossa salvação dependeria de uma mudança de consciência e que somente a educação poderia permiti-lo: está em nossas mãos chegar a educar seres mais sábios, benevolentes e livres do que nós. E me parecia que, deste modo, tal transformação seria possível. No entanto, existem resistências, e que resistências! Não são muitos os que querem a mudança da educação entre os professores, cansados e desmotivados, nem parece querê-la os ministérios. Os alunos já não a esperam, e ainda menos o império comercial global anseia por isso. Assim, temos a visão, a metodologia e até a estratégia, mas sabemos que a educação só poderá mudar se houver vontade política suficiente através da maturação da consciência dos poderosos; ou se houver consenso na opinião pública, cuja legitimidade – mais cedo ou mais tarde - tudo depende.”
“Falo, então, às autoridades que talvez seja possível fazer algo em vez de se render ao império comercial pseudo-democrático de Mamom. Eu falo com os professores, instando-lhes que deixem para trás sua resignação e se façam agentes de um grande sonho. Falo com os potentados anódinos, cujo despotismo oligárquico está escondido atrás da máscara de um supostamente benigno e democrático despotismo de mercado; e eu falo com os funcionários dos grandes organismos do comércio global, com a esperança de se fazer compreender coletivamente como não somente seria conveniente para todos nós, mas para eles mesmos, cumprir com a responsabilidade que nos cabe de velar pelo rumo da nossa nave espacial Terra".
E mais recentemente, em 2013, fez o seguinte desabafo em uma entrevista concedida à revista espanhola El Confidencial:
“A transformação, portanto, não virá de uma mudança política, da qual Naranjo não confia. ‘Estou em um momento da minha vida em que estou jogando a toalha em relação à mudança das instituições’, reconhece o psiquiatra. ‘Não creio que se possa falar com as autoridades, com aqueles que supostamente detêm o poder. Creio que a educação mudará, se ela mudar, porque os indivíduos mudam’.
O colapso do sistema é a nossa única esperança de construir algo melhor. Ao longo de sua vida, o psiquiatra, que na América Latina é uma personalidade reconhecida, foi convocado por todos os tipos de ministros e presidentes para falar de suas teorias sobre a educação, mas, hoje em dia, ele não tem a mínima confiança neles: ‘Penso que os políticos têm um acordo para fazerem mudanças sem nada fazer. Quando chegam ao poder, acreditam na possibilidade de ostentá-lo, mas são parte de uma rede que não se pode modificar. Hoje em dia a política não tem poder. Os partidos têm algum poder aparente, não os governantes, mas é o poder econômico que controla tudo, e a educação é o seu parceiro invisível, parte do complexo militar-industrial’.
Naranjo já não acredita nem mesmo no protesto dos cidadãos. E tem uma mensagem para a ‘maré verde’: ‘Os protestos educativos não têm conteúdo, não pedem uma mudança na educação, eles pedem melhores salários. Não se acredita em uma educação para transcender a mente patriarcal’.
Esta mente patriarcal, na qual Naranjo tem escrito por muito tempo, é para o psiquiatra a origem de nossos males como sociedade. ‘É uma mentalidade de homens caçadores que já não caçam animais, mas homens’, explica. ‘Uma mentalidade que nos converte em predadores de nós mesmos’. Por sorte, conta, o navio do sistema patriarcal, que construímos há milhares de anos, já não funciona e está naufragando: ‘O colapso do sistema é a nossa única esperança de construir algo melhor. Nós não devemos nos preocupar se o barco vai afundar ou não, devemos nos preocupar em encontrar o bote salva-vidas’”.
Não vejo pessimismo nesta declaração de Naranjo. Penso que é preciso deixar morrer o velho para que possa nascer o novo, sem que para isso sejamos obrigados a paralisar as nossas imprescindíveis ações libertárias no presente, visando a construção de um futuro mais promissor para toda a humanidade.
Portanto, neste sentido, acredito que outro mundo seja possível, mais livre, justo e amoroso. Penso, por tudo que foi exposto acima, que esta crença plena de esperança também seja compartilhada por Naranjo. Esta suposição pode ser confirmada por qualquer pessoa que vislumbre a dinâmica de vida desse sábio ancião, que, apesar dos seus 80 e tantos anos, continua com uma profícua produção intelectual, acompanhada de uma incansável rotina de entrevistas, palestras e eventos públicos voltados para a divulgação de sua mensagem transformadora.
Da mesma forma, poderíamos citar como exemplo as vidas do Dalai Lama ou de Noam Chomsky, ativistas octogenários da mesma magnitude sapiencial de Naranjo. São os parteiros de uma nova consciência global. Suas ideias são as sementes que irão germinar com o nascimento de uma nova civilização planetária, fundamentada em princípios universais como liberdade, responsabilidade, respeito, cooperação, cuidado, simplicidade, compaixão, etc.
Neste contexto, nós, como indivíduos, precisamos nos preparar para suportar as dores do parto advindas do surgimento de uma nova mentalidade, assumindo a responsabilidade pela nossa própria metanoia pessoal e, consequentemente, pela metanoia coletiva.
Finalizo, ratificando o alerta de Naranjo. Para não sermos pegos de surpresa quando ocorrer o já anunciado naufrágio da atual embarcação civilizacional, precisamos nos habilitar, pela transformação interior, a ingressar nos botes salva-vidas de um novo nível de consciência, que nos levarão, por intermédio da convivência fraterna e ajuda mútua, pelos tormentosos mares da transição planetária, em direção ao porto seguro de uma nova civilização global nascente, alicerçada em valores espirituais.
L.C. Dias
Para aprofundamento:
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